domingo, 18 de setembro de 2022

Mosqueiro - Pará. Foto: Ivana Braga

 

"Flor do Asfalto"

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
É feia. Mas é flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
Carlos Drummond de Andrade

Com licença Drummond...
Acho que também vi ...
Uma flor no asfalto, cheguem perto, venham ver
Isso não é comum por aqui
Não sei se madura ou desabrochando.
Não importa. Comentem, espalhem a notícia!
Isso pede um tempo na rotina
O tempo do deleite, do descompromisso
Da contemplação, da socialização sem network.
Parece fora de lugar, fora de hora,
Mas garanto que é uma flor.
Talvez não no sentido do verde na paisagem urbana.
Talvez não seja um oásis da natureza perdido na cidade.
Mas que seja agradável aos aos olhos
Que traga um aroma diferente
Um tato inesperado
Uma quase imperceptível melodia que nos leve longe 
Ou somente seja agradável ao coração.
Que seja um tempo de leve poesia
Seja como for, seja como flor
Furou o compromisso, a hora marcada,
A pressa, a formalidade, os rendimentos, 
Por uma flor no meio do tabuleiro de xadrez urbano
E por isso mesmo é uma flor, uma flor no asfalto 
E, olha...pra mim parece linda!


nota: descrição ou introdução à série "Flor do Asfalto", que se propõe a breves relatos de achados urbanos, espaços ou eventos para uma pausa.


Set de gravação "A bicicleta do vovô" - Foto: Max Interaminense

 

 

       
Set de gravação "A bicicleta do vovô" - Foto: Max Interaminense

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Abismo de Lágrimas da Paixão - Capítulo 5 - A primeira novela mexicana produzida na Bahia

Nota: todos os personagem e fatos desta novela são produtos de ficção e qualquer semelhança com a vida real é mera coincidência.

Cena do capítulo anterior...

Envolvida pelo romantismo da música, Marja Consuelo deixou que seus pensamentos lhe conduzissem a dez anos atrás, na misteriosa Polititican, quando teve seu coração roubado. Cerrou, então, seus grandes olhos negros, imaginando por onde andaria o jovem Felipe Augusto.

Capítulo 5

Cena 1

As pálpebras se abriram revelando os expressivos olhos verdes. Por ele ficaria ainda alguns minutos perdido nos pensamentos que lhe remetiam a dez anos atrás, na Floresta de Polititican, quando conheceu a doce Marja Consuelo, mas os afazeres lhe chamavam.

Felipe Augusto tinha agora vinte e três anos e também havia acumulado experiências de lugares distantes. Mas foi ainda mais longe. Passou os últimos dez anos do outro lado do Atlântico, em Berlin, solo alemão, onde foi morar com familiares da mãe para estudar Medicina na conceituada Universidade de Berlin. Assistiu apreensivo aos primórdios do partido nazista e antevia naquilo grandes problemas para sua segunda pátria. Voltou para Diepin dos Montes trazendo na bagagem um diploma de médico, o domínio do idioma alemão e a melhor receita de chucrute de toda a Europa.

Trouxe também consigo a vontade de através da medicina amenizar o sofrimento da população mais carente da região. Entre os mais sofridos, os  empregados de seu próprio pai. O jovem Felipe Augusto Escobar era o terceiro dos três filhos do temido Don Carlos Frederico Escobar

Depois da desilusão amorosa que amargou com Dona Ana Amélia, Don Carlos Frederico constituiu família casando-se com Dona Karen Guertrudes, com quem teve  Alexandre Ramon, Márcia Fernanda e o caçula, Felipe Augusto. Sua fazenda, La Cordinación de la Plata, era um latifúndio produtor de cana de açúcar desde a época da colônia, limítrofe à fazenda de Don José Anxieta.

Karen Guertrudes: - Ahiba mi hijo! Tu padre te chama. Sabes que ele detesta esperar.
Felipe Augusto: - No se desassossegue madre! Sei como domar la fera. E tengo tanta saudade de ti, que preferia quedarme na cocina para ayudarle no preparo do chucrute.
Karen Guertrudes: - Si hijo, yo mucho mais! Quero que me contes tudo de mi querida Alemanha. Que saudade de Munique no fervilhar da Oktoberfest, parecia que a cerveja nunca mais ia acabar.

Márcia Fernanda chegava na hora.

Márcia Fernanda: - Entonces la saudade es solamente de mama?
Felipe Augusto: - Ôôô Novinha - como Márcia Fernanda era chamada por todos - de ti tambien.
Karen Guertrudes: - Hija, vas tirar esse casaco de pele, ou vas cozinhar viva dentro dele.
Márcia Fernanda: - Mas não vou mesmo! Primeiro porque foi o presente que mi querido hermano me trouxe da Europa, segundo porque es um legítimo Chanel, e terceiro porque, se for esperar nevar nessas terras onde o diabo esqueceu o cachimbo acesso, vou morrer velha com o casaco mofando no armário. E mira madre como estoy guapa!

Karen Guertrudes e os dois filhos, Márcia Fernanda e Felipe Augusto, era um núcleo incompreendido para Don Carlos Frederico. Os três, de maneira discreta, eram generosos com os empregados, cuidadosos com os animais e muito carinhosos entre si. Karen Guertrudes conheceu Don Carlos Frederico Escobar ainda muito jovem e farrista, em uma das viagens de negócios do fazendeiro pelo o estrangeiro. Os dois rapidamente namoraram e casaram em Berlim. Ela, a contragosto, teve que interromper os estudos para mudar-se de imediato para Diepin dos Montes. No México, pressionada por Don Carlos Frederico, acabou dedicando-se apenas à casa e aos filhos. Para passar o tempo, produzia em casa a mais saborosa tequila da região, e ela fazia questão de provar cada engarrafado para garantir a qualidade. 

Felipe Augusto, além dos olhos claros, havia herdado da mãe o pragmatismo e o jeito reservado. Já Márcia Fernanda, não herdou nada de ninguém. Não tinha nada da frieza e aspereza de seu pai, mas também não herdou da mãe nenhum resquício de pragmatismo, e muito menos de reserva. Quando bebê, nem sequer nasceu, ela estreou, e foi sucesso absoluto. A moça vivia a organizar festas na fazenda, mesmo que fosse batizado de bonecas ou aniversário dos animais de estimação. O que importava era a movimentação. Colecionava periódicos de modismo, e gostava com paixão das películas de Hollywood e dos artistas mais famosos. Contudo, de uns tempos pra cá, só pensava em namorar.

Nesta hora ouviu-se a voz que vinha do gabinete...

- Felipe Augusto!

Karen Guertrudes: - Melhor ires hijo. Tu padre te chama e está impaciente.

Cena 2

Quando Felipe Augusto chegou ao gabinete, encontrou, além do pai, seu irmão Alexandre Ramon e Valnei Vicenzo, o capataz da fazenda. Don Carlos Frederico não estava em seus melhores dias.

Don Carlos Frederico: - Se toda vez que precisar falar-te tiver que esperar que conclua su maquiagem a fazenda pára.
Felipe Augusto: - Perdón padre pela demora!
Don Carlos Frederico: - Felipe Augusto, agora que és un hombre feito, quiero que assumas tu papel na fazenda.
Felipe Augusto: - E qual seria este?
Don Carlos Frederico: - Valnei Vicenzo está a me reclamar com frequência que nostros empregados estão fazendo corpo mole. Todo dia é uma dor, uma doença diferente. Acho que o poder de convencimento do capataz não está mais surtindo tanto efeito como nos bons tempos. Quero que use sus conocimentos de medicina e desmascare esses enroladores. Para os que realmente tiverem algum mal, lhes dê algo que suportem a dor o suficiente para que produzam.
Felipe Augusto: - Posso examiná-los padre, e saber o que passa.
Valnei Vicenzo: - No será difícil! São sempre los mesmos cabróns.
Don Carlos Frederico: - Muy bién, Alexandre Ramon e Valnei Vicenzo vão lhe acompanhar.
Felipe Augusto: - No és necessário ocupar Valnei Vicenzo! Alexandre Ramon pode me apresentar os trabalhadores. Tengo certeza que Valnei Vicenzo tem muitos outros afazeres que não podem esperar.

Valnei Vicenzo Boquerón sempre foi o capataz de Don Carlos Frederico Escobar, mas nunca foi bem quisto por Dona Karen Guertrudes, Márcia Fernanda e, principalmente, Felipe Augusto. Sua fama em Diepin dos Montes era das piores e, apesar de já ter sido alvo de várias investigações, acusado de ter passado desta para melhor trabalhadores da fazenda que trabalhava e de outras fazendas, nunca conseguiram provar nada contra ele.

Quanto a Alexandre Ramon, o filho mais velho de Don Carlos Frederico, este amadureceu e pegou no batente muito cedo em relação aos outros dois filhos. Aos dezesseis anos já coordenava a colheita e outras etapas da produção. Tudo porque tinha verdadeira idolatria pelo pai. Nem sempre concordava com seus métodos e decisões, mas para agradá-lo, não contrariava nada.

Alexandre Ramon: - No te preocupes padre. Vou cuidar disso de perto com Felipe Augusto. 

Cena 3

Yuri Willian foi um dos primeiros a chegar ao local do acontecido. A notícia correu como rastilho de pólvora pela cidade: "Ataque misterioso faz nova vítima em Diepin dos Montes". Apesar de seu foco ser a pesquisa na Floresta Polititican, Yuri Willian entendia que todos aqueles acontecimentos inusitados estavam correlacionados. Amontoados no local estavam a mãe e o primo da vítima, alguns poucos curiosos e José Rodolfo Colmenares, o jornalista do periódico mais sensacionalista da região. Yuri Willian dirigiu-se diretamente a ele.

Yuri Willian: - Mr. José Rodolfo, what happened? Digo, O que passa?
José Rodolfo: - Mais um ataque sangrento de SESABA. Já era tempo! Tinham meses que a entidade não me fornecia nenhum mísero material de trabalho.
Yuri Willian: - Por que concluístes que se trata de um ataque de SESABA?
José Rodolfo: - Uma ação covarde! Esta és su principal característica. O jovem saiu da lavoura e foi encontrar os amigos. Deixou a taberna aproximadamente 11h30 da noite e voltava para casa cortando caminho pela margem de Polititican, quando foi arrastado para dentro da floresta deixando apenas vestígios de sangue e parte de sus vestimentas. 
Yuri Willian: - I don't think so! No me parece ter las características dos desaparecimentos atribuídos à SESABA.
José Rodolfo: - Por que dizes isto?
Yuri Willian: - Todos os acontecimentos atribuídos à SESABA ocorreram entre os meses de agosto e novembro, pegando parte do verão e parte do outono, tendo alcançado maior intensidade sempre no primeiro terço do outono, justamente o período mais úmido do ano. E hoje estamos no mês de abril, em plena primavera.
José Rodolfo: - ?????????? - E o que tudo isso importa? O que posso lhe garantir gringo, é que és el período que mais vendo periódicos.

Neste momento chegou Nelson Massado, o Delegado da Província. Nelson Massado de La Mancha era Delegado de Diepin dos Montes há três décadas. O que lhe sobrava e experiência, lhe faltava em objetividade. Minucioso, detalhista e teimoso, tinha o olhar e o faro apuradíssimos para descobrir pistas em detalhes que ninguém conseguia enxergar, mas também era famoso por não conseguir concluir uma investigação. A papelada de inquéritos e investigações se acumulavam sobre sua mesa enroladas numa teia de fragmentos desconexos que ninguém conseguia interpretar.

Nelson Massado: - Mr. Yuri Willian Morris Tolstoievski, vejo que seus interesses vão muito além da Floresta Polititican!
Yuri Willian: - Mucho gusto em vê-lo também, Mr. Nelson Massado.

Quando chegou também Ronaldo Alejando, assistente de Yuri Willian, apressado e com um certo sentimento que havia perdido o melhor da festa.

Ronaldo Alejando: - O que perdi?
Nelson Massado: - Muito bem, agora vejo que o baile está completo. Mas vocês três já podem voltar para seus afazeres. Deixem um profissional cuidar disso, não precisamos de sensacionalismo e nem tampouco de cientistas neste ofício.
Yuri Willian: - Perdón Delegado, mas tengo que discordar. A ciência pode lhe ajudar muito neste ofício. Na América vários casos complicados têm sido desvendados por intermédio da ciência.
Nelson Massado: - Em México és diferente. A força da lei resolve os casos.
José Rodolfo: (com ironia) - Temos visto!

Nelson Massado fechou a cara. Nesta hora Ronaldo Alejando pegou os trapos que restaram da vestimenta da vítima, estendeu e perguntou para Yuri Willian.

Ronaldo Alejando: - O que lhe parece?
Yuri Willian: - Parece que a camisa foi rasgada em tiras com voracidade por algo pontiagudo e afiado. Tem características de um ataque de animal, e o rasgo parece ter sido feito por garras.
José Rodolfo: - Mas o jovem era muito grande e forte. Eu o conheço desde criança. Precisaria ser um animal muito forte.
Nelson Massado: - Um urso poderia fazer isso.
Yuri Willian: - Sem dúvidas! Um urso adulto seria a explicação mais plausível. Mas ursos não compõem a fauna desta região, e mesmo para Polititican, onde tudo parece possível, um urso adulto surgir do nada no bioma seria pouco provável.

Yuri Willian pensou um pouco e continuou...

- Ontem foi "a strange night". Como diria...???
Ronaldo Alejando: - Uma noite estranha!
Yuri Willian: - Sí! O ar estava denso e no céu não havia uma única estrela. A lua, que ontem era um círculo geometricamente perfeito, brilhava majestosamente solitária.
Rodolfo Ruan: - Na verdade foi uma noite sinistra. Ouvi uivos assustadores até meia noite, e depois, do nada, os uivos pararam.
Nelson Massado: - Aproximadamente a hora que o rapaz sumiu.

Nesta hora foi como um estalo para Nelson Massado, José Rodolfo e Ronaldo Alejando. Os três mexicanos se olharam e exclamaram juntos:

- Casac-Ivil!!!

José Rodolfo: - Claro! Tudo se encaixa. Não poderia ser outra coisa.
Nelson Massaulo: - Deixe de crendices! O que queres são pretextos para histórias mirabolantes em seu periódico.
Yuri Willian: - O que é "Casac-Ivil"???
Ronaldo Alejando: - É uma velha lenda mexicana, uma herança dos povos Maias. Diz a lenda que toda vez que a comunidade vivenciar grande sofrimento por desigualdades, pobreza e opressão, a fera na forma de um lobisomem surgirá para dizimar o sofrimento com violência.

Cena 4

- Olha a manchete! Olha a manchete! Ataque do lobisomem Casac-Ivil faz vítima em Diepin dos Montes!

Ao longe, do portão da fazenda Directiva Harmoniosa, ouvia-se Cauê Sancho Pança, o moleque que passava de bicicleta entregando os periódicos. O anúncio em alta voz chamou a atenção de todos na fazenda. 


terça-feira, 8 de novembro de 2016

Abismo de Lágrimas da Paixão - Capítulo 4 - A Primeira novela Mexicana produzida na Bahia

Nota: todos os personagem e fatos desta novela são produtos de ficção e qualquer semelhança com a vida real é mera coincidência.

Cena do capítulo anterior...

Enquanto todos estavam entorpecidos pela comida e a dança, passava pelo portal de entrada da Fazenda Directiva Harmoniosa a homenageada dos festejos. A diligência trazia enfim Marja Consuelo, sem que ninguém no insólito banquete se desse conta.

Capítulo 4

Cena 1

Marja Consuelo desceu da diligência e ficou apreciando o banquete como a plateia de um espetáculo teatral. Todos continuaram a cena inalterados sem se dar conta de sua presença. Alguns dançavam em torno da mesa, outros sobre a mesa, e outros, mais afoitos, sob a mesa. A moça então pensou:

- Como tudo na fazenda mudou. Mudou para melhor, para muito melhor.

Nesta hora, Helen Suely, o único ser humano capaz de tomar alguma atitude naquele momento, pegou um panelão e começou a bater fortemente com uma colher de pau, acordando todos do transe e anunciando a chegada da homenageada. Aos poucos, um a um foi retornando à realidade e se recompondo, deveras constrangidos.

Don José Anxieta e Dona Fátima Dolores se apressaram para receber Marja Consuelo.

Don José Anxieta: - Minha hija querida! Que felicidade em tê-la de volta. Não percebi sua entrada.
Marja Consuelo: - Nem me contes papa!
Dona Fátima Dolores: - Pepa, minha sobrinha, como estas linda!

Marja Consuelo retornava à Diepin dos Montes no apogeu de seus vinte e dois anos, formada em Engenharia Ambiental pela Universidade do México. Havia crescido, mas não muito. Contudo, o que não tinha de tamanho ganhou em formosura. Tinha o sorriso fácil, grandes olhos de jabuticaba amendoados e cabelos negros a meia altura, com um corte moderno para aquela região do México. Imediatamente encantou a todos. Apesar de ninguém saber muito bem o que era e o que fazia uma engenheira ambiental, todos comentavam e repetiam sobre o feito com pompa e circunstância, como sendo uma grande coisa.

Erla Joseane: - Prima querida! Contava os dias para sua volta. Este aqui es mi marido, Thomaz Jorge. Es professor de filosofia na cidade.
Marja Consuelo: - Professor de filosofia? Que fantástico! Muito prazer Thomaz Jorge. Acho que terei mucho gusto de hablar contigo.
Thomaz Jorge: - O prazer é todo meu de finalmente conhecer-te.
Ivana Guadalupe: - Pepa! No sabes a falta que fizeste!
Marja Consuelo: - Si, minha amiga! Também senti tua falta.
Fátima Dolores: - Pepa, vamos colocar suas bagagens no gabinete até decidirmos onde irás ficar, pois seu antigo aposento está ocupado pelo jovem casal Erla Joseane e Thomaz Jorge.
Erla Joseane: - É que agora somos dois e precisamos de mais espaço.
Ivana Guadalupe: - Não se preocupem com essas coisinhas pequenas, já cuidei de tudo. Levei todas as coisas do casal para aquele quarto desocupado do fundo do corredor, que é maior, e arrumei as coisas de Pepa de volta em seu antigo quarto. Já vou acomodar também suas bagagens lá.
Marja Consuelo: - Querida amiga, não precisava se incomodar. Sabes que não me importo com essas coisas.

Erla Joseane ficou tão enfurecida que saía fumaça por seus ouvidos. Não lhe restou nada mais a fazer além de colocar mais aquele desaforo na conta de Ivana Guadalupe.

Cena 2

O solteirão convicto, Marcelo Jaime, ao ver Marja Consuelo sentiu seu coração bater como nunca antes. A moça, além dos atributos físicos, esbanjava vida, alegria e autoconfiança como ele nunca tinha visto em nenhuma outra mulher. Imediatamente acalentou o desejo de retomar os planos de unir as famílias pelo matrimônio.

Marcelo Jaime: - Mi hermano - se dirigindo à José Medeiros - vejo que a chica Marja Consuelo já es una bela muchacha, com idade para pensar em casar-se. Podemos retomar os velhos pla-pla-planos das duas famílias, não acha?
José Medeiros: - Claro! Seria um turbinamento para nostro comércio. Pero usted hablando sobre matrimônio? Que passa? Estás enfermo?
Marcelo Jaime: - No, apenas achei que seria uma boa hora para expandir os negócios.

Nesta hora chegou Don José Anxieta.

José Medeiros: - Veja amigo, Marcelo Jaime está interessado em retomar conversas sobre matrimônio com tu hija.
José Anxieta: - Hum...não sei! Marcelo Jaime não es um hombre sério. Trará muitas lamentações para mi hija.
José Medeiros: - Isso é passado! Hoje ele é um hombre muy sério e comprometido com a família.
José Anxieta: - Só se for hoje mesmo, porque até ontem tive notícias dele esbanjando la plata en la Casa de la Luz Roxa.

Marcelo Jaime, que ouvia tudo, não desistiu da ideia, mas resolveu investir em outra frente, porque Don José Anxieta já havia mostrado que seria osso difícil de roer. Partiu Marja Consuelo.

Encontrou a jovem rindo, conversando com Ivana Guadalupe.

Marcelo Jaime: - Buenas tardes senhoritas! - o rapaz chegou comendo uma coxinha.
Marja Consuelo e Ivana Guadalupe: - Buenas!
Marcelo Jaime: - Como estas diferente Marja Consuelo, os ares da capital lhe fizeram muy bien.

As duas perceberam logo o tom da abordagem. Ivana Guadalupe, então, pediu licença para cuidar de seus afazeres, mas antes cochichou com a amiga:

- O papo é furado mas o muchacho es muy guapo! - e saiu.

Marja Consuelo: - Acho que não foi bem os ares. Talvez tenha sido as amizades, as experiências, o conhecimento. Este tempo fora de Diepin dos Montes me proporcionou muchas coisas.

Marcelo Jaime pensou consigo: - Ai Jesus, essa vai dar trabalho.

Marcelo Jaime: - Sim, tanto conhecimento e experiência para en-en en-enfiar em um fim de mundo desses. Me parece tempo per-per-perdido.

A proximidade com Marja Consuelo o deixava nervoso, o que intensificava a gagueira.

Marja Consuelo: - No penso assim. É uma região atrasada, sí, mas por isso mesmo tem tanto a se fazer. E com um poquito de vontade fica bem mais fácil.
Marcelo Jaime: - Já que é assim. Estou aceitando ajuda nas minhas exportações. Por que não passas lá na fazenda amanhã para me en-en-ensinar alguma coisa?
Marja Consuelo: - Nas exportações? No, chico. Tienes que começar pelas plantações. Com produtos melhores, exportas melhor.
Marcelo Jaime: - Entonces senhorita...tens planes pra mañana?
Marja Consuelo: - Que pena! Já tengo planos! Quem sabe outro dia.

Cena 3

Para um gringo saído de Harvard, a Meca do conhecimento científico racional, tudo em Diepin dos Montes era, no mínimo, inusitado. Por mais esforço que Yuri Willian fazia para acomodar fatos e personagens dentro da caixinha da razão, as peças pareciam escapar por todas as brechas e, às vezes, até mesmo pela barreira intransponível da matéria. Tudo naquele lugar, absolutamente tudo, lhe perturbava. Até um pouco mais do que isso. Diepin dos Montes lhe arrebatou o espírito que, como cientista, ele julgava não ter.

Quando já se preparava para despedir-se da festa, chegou Helen Suely carregando uma bandeja com seus preparados irresistíveis.

Helen Suely: - Senhor, lhe gusta mais uma tortinha salgada?
Yuri Willian: - Si, como no? It is wonderful! - se servindo de uma tortinha.
Helen Suely: - ?????????????????? - sem saber se ele estava achando aquilo bom ou ruim.

Yuri Willian mordeu e fechou os olhos longamente para apreciar cada sabor de forma calma. Não teve pressa. Por ele prolongaria o momento indefinidamente. Quando as pálpebras abriram, involuntariamente os olhos deram três giros e posaram displicentes no decote de Helen Suely. Ele, muito tímido, rapidamente desviou o olhar e exclamou:

- Your food is very delicious!
Helen Suely: - Que? Sinto mucho senhor, no compreendo o que dizes!

Ele aproximou o rosto e repetiu vagarosamente, articulando bem os lábios para que ela entendesse:

- Seu food é delicioso...

Helen Suely: - Como é? - Vapt!!!!

Não deu nem tempo de Yuri Willian concluir a fala. Helen Suely virou a mão na lata do jovem de um jeito que ele ficou ouvindo sinos por algum tempo. A Dona ficou virada no estopô e saiu esbravejando:

- Esses gringos abusados chegam aqui e pensam que são donos de tudo.

Yuri Willian, apesar do tabefe que levou, nem se incomodou. Ficou ali curtindo o gostinho da tortinha e a lembrança da bela Dona arretada.

Cena 4

Marja Consuelo conversou com todos. Trocou dicas de cozinha com Helen Suely e Irlan Pablo, matou a saudade das primas Diaz, conheceu seus noivos, os irmãos Ricos, interagiu com Thomaz Jorge até o limite do que pôde compreender, perguntou sobre as pesquisas de Yuri Willian e Ronaldo Alejandro, se esquivou de Marcelo Jaime, contou algumas de suas aventuras para Ivana Guadalupe e matou a saudade da família. Apreciou tudo na festa que a homenageava. Afinal, era muito bom estar de volta.
Contudo, aos poucos, foi sentindo vontade de se distanciar do burburinho. Se debruçou na balaustrada de uma das grandes janelas da casa, onde mirava ao longe a linha do horizonte na direção de Polititican, como quem procura algo que não consegue encontrar. Neste instante, a banda começou a tocar El día que me quieras, a música romântica de sua preferência:
Acaricia mi ensueño
El suave murmullo
De tu suspirar.
Como ríe la vida
Si tus ojos negros
Me quieren mirar...
...El día que me quieras...
...Que eres mi Consuelo.


Envolvida pelo romantismo da música, Marja Consuelo deixou que seus pensamentos lhe conduzissem a dez anos atrás, na misteriosa Polititican, quando teve seu coração roubado. Cerrou, então, seus grandes olhos negros, imaginando por onde andaria o jovem Felipe Augusto.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Abismo de Lágrimas da Paixão - Capítulo 3 - A Primeira novela Mexicana produzida na Bahia

Nota: todos os personagem e fatos desta novela são produtos de ficção e qualquer semelhança com a vida real é mera coincidência.

Cena do capítulo anterior...

Quando a banda de músicos terminava de se posicionar e afinar os instrumentos, assustadoramente, ouviu-se os estrondos. Todos se entreolharam. Os mais assustados se jogaram no chão e os sem noção saíram correndo de um lado para outro sem saber para onde ir.

Eram dois tiros do lado de fora da Casa Grande.

Capítulo 3

Cena 1

Marcos Vinícius, capataz de confiança de Don José Anxieta, estava nos fundos da Casa Grande cuidando dos cavalos e diligências que transportaram os convidados até a fazenda, quando ouviu os disparos. De imediato largou os equinos, catou o rifle e, enquanto corria para a frente da fazenda, afivelou o cinto com munições enfileiradas e dois revólveres embainhados nos coldres. Chegou à varanda da frente armado até os dentes e encontrou Don José Anxieta saindo da casa, também segurando uma pistola.

Marcos Vinícius Perón era a segurança e o braça forte da Fazenda Directiva Harmoniosa. Um empregado fiel que trabalhava há muitos anos com Don José Anxieta e impunha respeito na propriedade e nas redondezas.

José Anxieta: - Vamos Marcos Vinícius! Vamos averiguar o quê se passa. A segurança dos convidados é nossa responsabilidade. Mas veja, sejamos discretos, isto ainda é para ser um festejo.
Marcos Vinícius: - No se preocupe Senhor, serei preciso e discreto.
José Anxieta: - O plano é o seguinte: usted deve contornar o camino de entrada para estancar qualquer ameaça antes que passe pelo portão.
Marcos Vinícius: - No sei Senhor se és um bom plano! Penso que es mejor encontrar a fonte dos disparos no começo do camino para que nem cheguem a adentrar na fazenda.
José Anxieta: - ????????????????? - Faça o que achar mejor!

Marcos Vinícius partiu armado e determinado como se fosse o "duro de matar" das terras mexicanas, enquanto Don José Anxieta ficou na entrada da varanda tentando avistar de onde vinha os tiros. Quando o capataz descia as escadas da varanda, novos disparos foram ouvidos. O rapaz deu um pulo de susto rolando escada abaixo. Quando parou no pé da escada depois da última cambalhota, só conseguia pensar num lugar seguro para se esconder. Se arrastou ligeiro até alcançar um arbusto seco que não camuflava nem um de seus volumosos braços. Don José Anxieta, que assistia a cena, pensou:

- Mas agora é que deu mesmo!

Nesta hora apontou no caminho uma diligência atirando para cima. Era o transporte de Don José Medeiros Padilha e família, que vinha dando disparos para anunciar a chegada.

Don José Medeiros Padilha era um grande amigo e velho aliado político de Don José Anxieta. O eminente cidadão era um articulador político cheio de conversa e prosopopeias. Tinha, em sociedade com o irmão Marcelo Jaime, a Fazenda Obras de Vento em Popa, grande produtora e exportadora de milho e café. Don José Medeiros casou-se com Dona Ana Amélia Padilha, com quem teve apenas uma filha, a doce Márcia Regina. O irmão, Marcelo Jaime Padilha, era um solteirão convicto. Don José Anxieta recebeu a todos na varanda da casa.

José Anxieta: - Companheiro Don José Medeiros, queres me assustar e espantar meus convidados com todos esses disparos alarmantes?
José Medeiros: - No, no, meu amigo. No era minha intenção tumultuar sus festejos. Contudo, admito que o discretismo não é a minha maior qualidade. Usted me conheces,  gosto mesmo das chegadas carregadas no pirotecnismo.
José Anxieta: - Si, já conheço bem! - e desistindo de tentar explicar a inconveniência da ação, se voltou galanteador para as damas - Dona Ana Amélia Padilha, como estás? Vejo que a natureza tem sido generosa com vossa senhoria, estas cada dia mais encantadora. E tu, jovem Márcia Regina? - se voltando para a filha - O florescer da juventude lhe fez muy bien. Estás vendendo formosura!
Ana Amélia: - Encantada Don José Anxieta, o senhor como sempre muy gentil.
Márcia Regina: - Agradecida Don José Anxieta. E o senhor, como passa?
José Anxieta: - Muy bien, melhor ahora que mi hija está regressando à fazenda. E usted, Marcelo Jaime? Quando entrará enfim para a confraria dos hombres sérios de Diepin dos Montes?

Esta foi uma cutucada maliciosa de Don José Anxieta. Marcelo Jaime já beirava os quarenta anos mas não dava sinais de interesse de abrir mão da vida de Don Juan de La Província. Há muitos anos, logo que Marja Consuelo nasceu, chegaram a ensaiar algum arranjo para unir as famílias através do matrimônio dos dois. Mas hoje, diante da fama do rapaz, Don José de Anxieta mantinha as barbas de molho.

Marcelo Jaime: - Don José Anxieta, como sempre com pressa e com metas di-di-difíceis de al-al-alcançar. - denunciando a ligeira gagueira herdada por todos os homens de sua família. - Tenho certeza que com calma e passos seguros vamos muy lejos. Ademais, os afazeres das planilhas e medições de exportação me consomem a energia e todas las horas do dia e da noche.

E Don José Anxieta pensou consigo: pobre Marja Consuelo! Desse mato não sai coelho.

José Anxieta: - Vamos amigos, vamos todos adentrar e apreciar a festa que preparamos com muy carinho.

Cena 2

Thomaz Jorge depois de concluir sua labuta com as toalhas de mesa pôde enfim aproveitar a festa. Alegrou-se quando viu se aproximando seu mais recente amigo, Yuri Willian, acompanhado de Ronaldo Alejando.

Yuri Willian: - Olá my friend Thomaz Jorge! How are usted?
Thomaz Jorge: - Olá meu amigo Yuri Willian! Eu, depois de ter sido consumido pela essência da insustentável leveza das toalhas, devo confessar que estou com o espírito exaurido pela dialética.
Yuri Willian: - ????????? - O gringo não entendeu nenhuma palavra.

Yuri Willian Morris Tolstoievski era um jovem doutor, na faixa dos vinte e tantos anos, Phd em Zoobotânica e pesquisador titular da Universidade de  Harvard. Sua origem era russo-americana, o antagonismo encarnado da guerra fria que estava por vir. Herdou o Yuri Tolstoievski de seu pai, um russo bolchevique que lutou na revolução socialista ao lado de Lênin, e o Willian Morris da mãe, uma doce americana educada na mais tradicional família republicana americana. Como o amor transforma tudo, seus pais abriram mão de suas mais radicais convicções político-sociais para constituírem família nos Estados Unidos, filiando-se ao partido democrata. Yuri Willian foi criado na América e se transformou em um nome respeitado na comunidade científica mundial. Foi mandado por Harvard a La Província de Diepin dos Montes para, à frente de uma equipe multidisciplinar, pesquisar a fauna e a flora da Floresta Polititican. Entre os integrantes de sua equipe estava o doutorando e professor adjunto de Harvard, o mexicano Ronaldo Alejandro.

Yuri Willian: - Que problem my friend! I hope you melhorar sua dor de barriga logo.
Thomaz Jorge: - ????????? - não entendeu, mas deixou para lá.
Yuri Willian: - This is Ronaldo Alejandro Barden, membro da equipe de pesquisa e mexicano como tu, from sul del México.
Ronaldo Alejandro: - Como pasa?
Thomaz Jorge: - Muy bien amigo! Entonces, como vão as pesquisas? Quando conheceremos os mistérios que envolvem a indecifrável Polititican?
Yuri Willian: - Por enquanto solamente questions. Sua floresta es matéria para so many years de pesquisa. Es trabajo para muitas gerações de pesquisadores.

Nesta hora chegou Erla Joseane.

Thomaz Jorge: - Chegue aqui "amore mio"! Deixe-me lhe apresentar Dr. Yuri Willian, chefe das pesquisas sobre a Floresta Polititican, e o Dr. Ronaldo Alejandro, membro de sua equipe. Eles atravessaram a fronteira para desvendar nossa rica floresta. Vieram diretamente dos Estados Unidos da América.

Os olhos de Erla Joseane brilharam como diamantes e ela disparou uma matraca descontrolada: - No es possible! Só pode ser o destino. - jogando os cabelos para o lado - Me contem, como es Hollywood? E las artistas? Son mesmo belas como nas películas que passam na cidade? Seja como for, beleza no es um problema para mim. Digam-me, o que devo hacer para tentar um teste de talentos. Sabem, yo posso cantar, dançar e interpretar qualquer personagem, mas prefiro las personagens protagonistas. Soy la mejor artística de La Província.

Ronaldo Alejandro ficou calado e quanto a Yuri Willian, a única palavra que o gringo realmente entendeu na acelerada comunicação de Erla Joseane foi "Hollywood", o resto deduziu por si. Então, rindo, respondeu:

- Sorry Miss, receio no poder ajudar! Ainda não tive opportunity de conocer Hollywood, mas, assim como usted, me gusta la ideia. Es que los afazeres da university são muitos. Quando criança, my parents me levaram à Califórnia, mas não cheguei a ir a Hollywood. Foi a única vez que vi o mar, e jamais poder esquecer. Is unforgettable.
Erla Joseane: - No creio nisso! No posso ter tão pouca suerte. Usted hay de conocer alguém que trabalhe em Hollywood, ou que conheça alguém que conheça, ou alguém que conheça alguém que conhece alguém que já foi lá.
Yuri Willian: - No, creio que no. I am so sorry!

Erla Joseane pensou consigo: - so sorry uma ova! Americano fajuto! – e saiu.

Ronaldo Alejandro apressou-se em pedir licença para Thomaz Jorge e Yuri Willian e atalhou Erla Joseane um pouco mais a frente.

Ronaldo Alejandro: - Permisso senhora, acho que talvez possa lhe ajudar.
Erla Joseane: - No creio! Yo no tengo nenhum interesse pelas esquisitices de Polititican.
Ronaldo Alejandro: - No senhora, no es isto. Conheço algunas personas em Hollywood, algunas até bastante influentes, e talvez possa conseguir uma oportunidade para usted. Yo mesmo já tive algunas participações em películas.

Na verdade Ronaldo Alejandro não sabia nada sobre Hollywood. Não tinha nem sequer passado por perto da Califórnia, e não conhecia ninguém no meio cinematográfico. Mas o rapaz era ambicioso e via em Erla Joseane uma oportunidade para se aproximar da família e entrar no seleto grupo dos influentes na política de Diepin dos Montes.

Erla Joseane: - A si, yo logo vi que usted era diferente do gringo. Me contes, que película? Yo conosco todas!
Ronaldo Alejandro: - Aquela...- tentando improvisar – no sei se conhece...aquela com... Valentino, Rodolfo Valentino.
Erla Joseane: - Virgem Maria de Guadalupe! Ele es mi ídolo maior. Yo no posso crer que usted conhece em pessoa. Que película foi? Me contes logo!
Ronaldo Alejandro: - Deixa eu ver se conheces mesmo todas. Ele vestia uma roupa...- e não conseguia lembrar de nenhuma imagem, nenhum título, nenhum personagem - ...trazia na cabeça um...
Erla Joseane: - ...Turbante! Si, claro! Um turbante!
Ronaldo Alejandro: - Si!
Erla Joseane: - No me contes que atuaste en la película "El Sheik", el gran conquistador de los desertos da Arábia.
Ronaldo Alejandro: - Claro! Foi una experiência inesquecível.
Erla Joseane: - Pero...quem era usted na película? Yo assisti sete vezes e no consigo me lembrar de tu rosto.
Ronaldo Alejandro: - Como no? Yo era aquele beduíno que usava um turbante e um lenço no rosto mostrando apenas o olhar penetrante.
Erla Joseane: - Si, claro! Ahora estoy reconhecendo sus olhos. Solamente os olhos apareciam, mas eram muy marcantes. Como não percebi antes? Usted foi muy corajoso saltando daquele corcel selvagem. Impressionante!
Ronaldo Alejandro: - Tudo pela arte!

E os dois pegaram numa longa conversa sem pé nem cabeça.

Cena 3

Don José Anxieta avistou entre os convidados Don Braz Norton Rico, o prefeito da sede de La Província de Diepin dos Montes, e foi ter com ele.

José Anxieta: - Senhor Prefeito, que honra recebê-lo em minha humilde fazenda.
Braz Norton: - A honra é minha pelo seu convite, Don José Anxieta.

Apesar do tratamento cordial e de não haver rivalidade política, a relação entre os dois não era exatamente as mil maravilhas. Don Braz Norton levava sua gestão com mão de ferro.

Braz Norton: - Observei que seu gado não tem mais trafegado por nossas rotas oficiais  pedagiadas. Não tem comercializado seu rebanho recentemente?

Don José Anxieta era austero com seus compromissos fiscais, mas se viu apertado com a pergunta. Não concordava com as medidas impositivas que Don Braz Norton empurrava goela abaixo dos fazendeiros e comerciantes locais e, para fugir dos pedágios proibitivos das novas rotas inauguradas pela prefeitura, estava usando velhas rotas desativadas.

José Anxieta: - É...os negócios não andam muito bem. Muita concorrência das províncias do leste.
Braz Norton: - É uma pena mesmo. Mas quando precisar, verás que primor de obras realizamos. As novas rotas são calçadas com pedra folheta sobre coxim de areia. Um verdadeiro tapete. Além disso, quem seria doido que se arriscar pelas rotas desativadas, sujeito a bandoleiros, acidentes e, muito pior do que isso, a pesadíssimas multas da prefeitura.
José Anxieta: - Só um louco! - com um sorriso bem amarelo.

Nesta hora chegou Dom José Medeiros.

José Medeiros: - Senhor Prefeito, que prazer imedível em revê-lo!
Braz Norton: - O prazer é todo meu. Imagino que o senhor José Medeiros também esteja tendo problemas com os negócios. - E saiu enigmático.

Don José Medeiros não entendeu o comentário, mas passava exatamente pelos mesmos problemas.

José Medeiros: - Então amigo, qual era o motivo de tanta confabulância?
José Anxieta: - Esse prefeito se acha o rei da cocada preta. Muito antes dele ser prefeito eu já era dono de boa parte das terras dessa região perdida no mundo.
José Medeiros: - Por falar em desencontrado no mundo, não tenho ouvido falar no espinhoso.
José Anxieta: - De quem hablas?
José Medeiros: - Hora de quem? De Don Carlos Frederico Escobar, é claro.

Don Carlos Frederico Escobar era um nome que se evitava falar. Era inimigo político declarado de Don José Anxieta e Don José Medeiros, mas isso era o que menos pesava em seu currículo. Carlos Frederico Escobar era descendente de uma linhagem espanhola miseravona. Seus ancestrais pertenciam a uma das primeiras famílias a chegar para colonização do México e a lenda do sobrenome Escobar trazia histórias sombrias que iam desde sangrentos capítulos de escravização do pouco que restou dos descendentes do povo Maia e, depois, dos escravos africanos, até recentes negócios escusos.

José Anxieta: - No tengo notícias recentes. Melhor assim.
José Medeiros: - No penso assim. Ele es muy perigosista. Quando está quieto é porque algo de muito ruim está arquiteturando naquela mente sombrinolenta.

A rivalidade de Don José Medeiros com Don Carlos Frederico ia além de questões políticas e comerciais. Don Carlos Frederico havia cortejado Dona Ana Amélia quando jovens, mas o namorico foi interrompido pelo arranjo da família da jovem para desposá-la com Don José Medeiros. Os mais conversadores diziam que Don Carlos Frederico nunca aceitou a separação e que, até os dias de hoje, ainda acalentava o sonho de ter Dona Ana Amélia. Esse conversê para Don José Medeiros era como apunhaladas em seu peito.

José Anxieta: - Deixe de besteiras! Quando está quieto é porque não está se mexendo, e pronto. Vamos tomar umas tequilas e dar boas risadas falando de coisas mais agradáveis.


Cena 4

Dona Fátima Dolores começou a chamar todos os convidados para a mesa do banquete que estava servida nos jardins da Casa Grande. A mesa tinha quase vinte metros de comprimento, coberta com tolhas brancas de renda sobre linho de cor crua. Os pratos estavam divinamente decorados com flores e frutas secas e o aroma dos quitutes de Helen Suely impregnava as narinas dos presentes e todo o jardim.

Os convidados se acomodaram e Dona Fátima Dolores, acompanhada do irmão Don José Anxieta, saudou a todos.

Tim, tim, tim. Don José de Anxieta bateu na taça de vinho chamando a atenção e passando a palavra para Dona Fátima Dolores.

Fátima Dolores: - Meus queridos amigos, es um grande prazer recebê-los em nossa casa em um momento de imensa alegria para nós, exatamente quando nossa princesinha Pepa, a doce Marja Consuelo, está chegando depois de tanto tempo longe. Esperamos que apreciem a comida, a bebida e, sobretudo, o design de interiores, que é de última. Ahora mi hermano, Don José Anxieta, gostaria de dizer algunas calorosas palavras para ustedes. Por favor, mi hermano.
José Anxieta: - Vamos comer!

Liberados, os convidados começaram a se servir e a degustar o banquete.

Dona Ana Amélia provou os rolinhos de defumado de avestruz e ofereceu para a filha Márcia Regina. As duas deram rapidamente a primeira mordida, mas, quando o rolinho alcançou o paladar, fecharam os olhos e desaceleraram o ritmo, mastigando calmamente como se aquela fosse a última refeição de suas vidas. As irmãs Diaz, que estavam esfomeadas, partiram para o prato com voracidade sem investigar os ingredientes, mas, da mesma forma, se renderam à experiência de saborear calmamente a explosão de sabor. Yuri Willian ao mastigar a avestruz  revirou os olhos dando duas voltas com as córneas. Aos poucos,  foram provando as variedades oferecidas e se rendendo à apreciação que extrapolava o paladar. Helen Suely havia realmente caprichado no molho de papoulas e cogumelos selvagens, e todos se entregaram sem ressalvas ao barato do banquete.

Durante o almoço, Erla Joseane enxergou Thomaz Jorge como a muito tempo não o via. Os dois degustaram o almoço servindo um ao outro diretamente na boca, para mão falar do baile de mãos por baixo da mesa.

Dona Ana Amélia também abriu mão dos talheres e serviu Don José Medeiros como quem alimenta um bebê. E assim fizeram todos os outros convidados. Deixaram de lado os talheres e oscilaram o comportamento agindo ora como crianças, ora como bichos livres despreocupados com os grilhões da etiqueta.

Dona Fátima Dolores, que comeu bastante, se animou bastante também. Quando a música embalou, foi a primeira a levantar. Enrolou a toalha de renda na cintura, pôs uma flor no cabelo, e encarnou a cigana Sandra Rosa Madalena, com uma performance que faria babar Sidney Magal. O sucesso foi tanto que o prefeito Braz Norton deixou a esposa sentada e levantou-se para dançar com ela.

Ivana Guadalupe catou outras duas toalhas de mesa para cobrir a cabeça dos irmãos Eldo Luis e Vitor Alonso, travestindo-os de árabes para apreciar a dança do ventre que ela se esforçava para dançar como se fosse a odalisca preferida do harém. Movimentos ondulados de quadris deixaram os irmãos um pouco sonsos, se esquecendo completamente da banda e suas obrigações profissionais.

Os irmãos Rico dançavam apaixonadamente com suas noivas, as irmãs Diaz, quando, vinte minutos depois, perceberam que os casais estavam trocados. Destrocaram e tudo continuou no mesmo jeito de antes.

Marcos Vinícius, que em geral era de pouca conversa e tirado a brabo, puxou Márcia Regina para uma rumba louca, sacolejando a menina como uma boneca de pano. Os dois subiram na mesa dando um espetáculo de dança invejável, sendo ovacionados pelo público. No giro derradeiro, Marcos Vinícius lançou a moça com tanta força para o alto que não conseguiu ver onde ela foi parar.

Empolgado pelo sucesso de Marcos Vinícius e Márcia Regina, Irlan Pablo subiu do outro lado da mesa e começou a dançar o Lepo-Lepo.

Ronaldo Alejandro zanzava de um lado para outro procurando um par, mesmo que fosse uma vassoura para balançar o esqueleto com ele, quando ouviu um grito ficando cada vez mais perto. Olhou para cima e avistou Márcia Regina, que só agora retornava caindo do lançamento de Marcos Vinícius. Com a graça de Deus, ele aparou a moça sem maiores estragos. Entrelaçou as pernas com a chica e os dois se entregaram ao arroja. A sofrência foi tanta que a metade dos convidados desatou no choro descontrolado.

Don José Medeiros e Dona Ana Amélia dançavam bem lentamente, de rostos colados, como se nada mais existisse no mundo.

Thomaz Jorge, que estava para a dança como a chuva está para o deserto, lembrou-se de uma matéria de periódico que falava de um ritmo bandido caliente que nascia na Argentina, o tango, e agarrou Erla Joseane na dança com uma pegada que deixou a moça toda molinha.

Don José Anxieta vestiu uma toalha de mesa como uma capa e encarnou El Zorro, ziguezagueando uma colher de cozinha como se fosse uma espada mortal.

Marcelo Jaime, absolutamente hipnotizado pelos jogos de ombros da cigana Sandra Rosa Madalena, não contou conversa, roubou a dama de Braz Norton e deu piruetas como um bailarino russo do Bolshoi.

O gringo Yuri Willian nem se mexeu, estava em transe profundo e, nos seus delírios, só tinha olhos para Helen Suely.

A responsável por todo aquele espetáculo surreal, Helen Suely, tinha uma regra: quanto trabalhava não comia.  Assim, passeava impune pelos convidados, vista por eles como se andasse em câmera lenta sobre as nuvens. Os cabelos e a saia levantavam ao vento, revelando os contornos das pernas compridas. Para os homens, e, porque não, àquela altura do campeonato para as mulheres também, era uma cena  inspiradora, estimulante, arrebatadora.

Enquanto todos estavam entorpecidos pela comida e a dança, passava pelo portal de entrada da Fazenda Directiva Harmoniosa a homenageada dos festejos. A diligência trazia enfim Marja Consuelo, sem que ninguém no insólito banquete se desse conta.