terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Uma Tarde Incomum de Praia


O combinado parecia perfeito: sexta-feira, praia no horário do almoço. Realmente não podia ser melhor. No verão o céu de Salvador atinge o mais belo tom de azul e a praia parece murmurar: vem cá, chega aqui. Diferente de Vinícius, o dia não era exatamente “para vadiar”, mas duas horas deviam ser suficientes para “desanuviar”, afinal, não passávamos pelos melhores dias em nosso ambiente de trabalho, um órgão público. O momento era de transição política e o novo governo, que acabara de assumir, prometia de forma um pouco vaga mudanças que não tínhamos ainda como mensurar. Bem, em briga de cachorro grande é melhor não se meter, então vamos à praia. Inicialmente o programa era para aproximadamente oito pessoas, mas entre acertos e desacertos sobramos nós três: Alida, Borges e eu.

Praias do Flamengo pareceu a melhor opção. Biquíni e frescobol na bolsa, pegamos o rumo da praia. Chegando lá, já ansiosos para pisar na areia, trocamos a roupa no banheiro da barraca que acabamos ficando. Borges, que estava sem sacola, me deu algumas coisas enroladas em sua calça jeans para que guardasse na minha bolsa. Entre cerveja, água de coco e um bom mergulho, conversávamos sobre o privilégio de poder curtir uma praia tão gostosa em pleno dia de semana. Nenhum dos três baiano, concordávamos que esse povo tinha mesmo motivos para ter tão bom astral. Com quinze minutos de praia, enquanto Borges curtia o mar, fomos – Alida e eu – jogar frescobol, deixando nossas coisas, bolsa e tudo mais na mesa da barraca sobre a areia da praia, há aproximadamente 20m de onde jogávamos. Não demorou muito para que ele chegasse dando o alarme:
- Vocês pegaram as coisas da mesa? Porque meu relógio, que estava dentro do sapato, não está mais lá.

Eu, adepta convicta do pensamento positivo, não dei muita atenção, e respondi qualquer coisa tentando fazê-lo acreditar que não tinha olhado direito ou que talvez tivesse deixado em outro lugar. Alida foi pela mesma linha. Mas ele foi firme:

- Não, não. Eu tenho certeza.

Diante da insistência, fomos “averiguar” – já usando um termo compatível com os acontecimentos que viriam na seqüência. Não deu outra, haviam levado o relógio dele e minha bolsa, com todas as coisas que havíamos colocado dentro. Num lapso de confusão mental, olhei um pouco aliviada e pensei comigo: “ainda bem que não levaram o frescobol”, já planejando a praia do fim de semana que estava chegando. Recobrada a consciência e a real escala de valores, atinei que tinha perdido a chave e o documento do carro, a carteira com todos os documentos pessoais e cartões, o celular, as roupas e mais ou menos as mesmas coisas de Borges. Indaga daqui e investiga dali, indicaram o sentido do caminho de nosso larápio. Em completa sintonia, nos olhamos e saímos correndo na direção enquanto Alida gritava: "- vou ficar aqui olhando o resto das coisas e esperando vocês."

Perguntando mais ou menos 300m na frente, descobrimos que haviam pego um rapaz roubando em outra barraca e entregue para o módulo da polícia militar, localizado na divisa entre os bairros de Praias do Flamengo e Praia de Ipitanga. O módulo, que se não fosse pelas cores tristes e o péssimo estado de conservação, mais pareceria uma casa de boneca; tinha uma janela na fachada, por onde, cheia de curiosidade, coloquei a cabeça para xeretar. Dentro, numa área de aproximadamente 12m², víamos dois policiais em torno de um jovem rapaz sem camisa. Este estava sentado no chão com as mãos algemadas para trás e uma fisionomia que misturava um sincero sentimento de medo e um fingido sentimento de “não tenho nada com isso”. Para minha boa surpresa, no meio da cena estava minha bolsa com todas as coisas espalhadas aleatoriamente pelo sujo chão do módulo. Da janela, falei:

- É a minha bolsa. Que bom que vocês a acharam.

Entramos, nos identificamos e, contando aos policiais o que tinha acontecido, começamos a juntar as roupas e demais objetos, verificando se tudo estava lá. Foi quando, com surpresa, avistei aquela imagem inesperada de uma calcinha e uma cueca juntas no meio de tudo. A calcinha era minha, que havia trocado pelo biquíni quando cheguei na praia, mas com toda a certeza aquela cueca não fazia parte de minha indumentária. Somando os fatos, constatei que, dentro de minha bolsa, sem que eu soubesse, a cueca do meu amigo descansava placidamente há alguns centímetros de minha calcinha.

Borges é um amigo dos mais queridos. Nos conhecemos em janeiro de 2005, logo que comecei a trabalhar no Estado. A empatia foi imediata e em pouco tempo conversávamos sobre os mais variados assuntos. Não estaria exagerando se dissesse que este convívio ampliava meus conhecimentos, aguçava minha percepção e exercitava minha capacidade de associação e argumentação. Ele é o cara. Quando saiu do órgão durante pouco mais de um ano para outros desafios, “emburreci” um tanto. Mas aquela inesperada situação de calcinha e cueca publicamente juntas me deixou realmente constrangida, piorada ainda pela participação desconfiada e um pouco cínica de um dos policiais. Borges, um verdadeiro gentleman, fingiu não perceber o que acontecia.

Nossas coisas estavam todas lá, a exceção do relógio e celular dele, que o rapaz insistia em dizer que não pegou e que não sabia de nada. Achei que, cumprido os procedimentos normais, estaríamos liberados, mas não foi exatamente o que aconteceu. Enquanto nos preparávamos para sair, ouvíamos o rapaz pedir insistentemente ao policial que o liberasse, porque era menor (o que não parecia), e já haviam encontrado tudo, e ele não ia fazer mais isso, e ia nevar no próximo verão, e etc. Foi quando, num lance maluco de total falta de bom senso, o policial, que aparentemente comandava a “operação”, exclamou:

- Vai depender dela!

Arregalei os olhos sem entender muito bem o que ele queria dizer. Mas o sargento insistiu:
- Já que ele não devolveu o relógio e o celular, então é a senhora que vai decidir se a gente libera ele ou não.

Agora imaginem: sou uma moradora da área e, com freqüência, passeio de bicicleta com meu filho, corro, frequento a praia, circulo a pé ou de carro, e o delinquente juvenil, como ele queria parecer ser, era um conhecido ladrão da mesma área. Não seria nada difícil cruzar com ele pelas ruas do bairro e muito complicado se a lembrança que guardasse de mim fosse a da madame que o ferrou. Chamamos o policial para fora do módulo e, com toda a delicadeza que é necessário para conversar com a "categoria", dissemos em bom português que ele estava “queimando o meu filme” e que podia tratar de desfazer o que tinha feito. Só então fomos liberados.

Enquanto isso, Alida aguardava preocupadíssima na mesa da barraca. Preocupadíssima, mas o sol estava tão lindo, a praia uma delícia e o aroma do acarajé fritando exalava no ar. Bem, que mal poderia haver em comer um acarajé enquanto esperava? Já com o quitute na mesa, ela começou a degustar a iguaria baiana mas, atormentada pelo remorso de estar apreciando tal delícia enquanto os amigos perseguiam ladrões, os pedaços desciam quadrados. Iniciada na arte da meditação e filosofias orientais, utilizou um método pouco convencional, acho mesmo que de autoria própria, para enviar boa energia para nós. A cada pedaço ingerido, entoava mentalmente poderosos mantras. Terminado o acarajé, achou que boa energia não era suficiente para ajudar. Lembrou do meu celular que foi roubado junto com a bolsa e arquitetou uma manobra ousada. Ligaria para o ladrão, se identificaria como delegada de polícia e daria uma prensa no meliante. Não consigo mesmo imaginar essa cena. Alida é filha de italianos e tem o idioma como língua materna, o que é ainda denunciado num leve sotaque e em algumas expressões que deixa escapar. Além disso, vamos combinar, é uma mulher sofisticada, de um senso de humor agradável e gestual requintado – às vezes um pouco estabanado, para não fugir as origens. De onde sairia a marra e aquele vocabulário específico necessário para esse fim? Não sei. O fato é que cheia de coragem e determinação ela ligou, e para a sua surpresa, atendi o telefone.

Falamos rapidamente e deixei para contar tudo quando voltássemos à barraca. Já de volta, com tudo esclarecido, entre boas risadas lamentamos a perda do celular e do relógio de nosso amigo. Agora era hora de voltar. Chegando no carro, descobrimos que o celular dele não havia sido roubado, tinha na verdade caído no banco do carro, sem que ninguém percebesse.

Bem, o relógio surrupiado...R$35,00 - no camelódromo da rodoviária.

Uma tarde como essa, não tem preço.