segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Serviços de cuidadora Kung Fu






Whooooau! I feel good, I knew that i would now.
I feel good, I knew that I would now.
So good, so good, Igot you.

Cantou o despertador tentando me convencer que eu estava animadíssima em acordar às cinco e meia da manhã. Tudo bem, a história era mais ou menos a seguinte.

Minha amiga Alida seria operada aquela manhã do outro lado da cidade e eu iria acompanhá-la. Não estava fazendo isso só porque há dois anos ela havia feito exatamente o mesmo por mim, mas, sobretudo, porque ela é uma grande amiga. Além disso, a danada tinha me feito uma proposta indecente do tipo “nós somos liberadas do hospital meio dia e você ganha atestado para o dia inteiro”. - Feito, “tô” dentro!

Saí de casa pouco depois das seis, peguei Alida e, como havia sido marcado, às sete horas em ponto nós estávamos na porta do hospital. Entramos, nos identificamos e ficamos esperando o atendimento. O hospital, do tipo day hospital, era um brinco: claro, espaçoso, limpo, bem decorado, café expresso, TV a cabo e aqueles lanchinhos de máquina. Era um pouco frio, mas em Salvador isso é uma qualidade maravilhosa. Aquilo ia ser uma moleza, um dia de lazer no meio da semana. Sete e dez, sete e vinte, sete e meia e nada. Ninguém nem olhou para nossa cara inchada de sono. Admito que não era exatamente uma bela visão, mas espera aí, por que mesmo que mandaram a gente estar aqui as sete? Finalmente, sete e trinta e cinco chamaram Alida e começaram o atendimento.

Mandaram a gente para um apartamento bem pequenininho, para ser mais exata: minúsculo. Enquanto a enfermeira preparava Alida, a pré-operada relacionava as minhas inúmeras possibilidades para aquela manhã.

- Você pode ler, dar uma volta no hospital, assistir TV na sala de espera, conversar com as enfermeiras...
E eu pensando: - Meu Deus, isso é praticamente um Resort.

E Alida continuava: - ...e ainda pode deitar aqui na cama e dormir até eu chegar.

Nessa hora a enfermeira muito sisuda deu um salto e disse:

- Não pode! A cama tem uma assepsia de preparação para receber o paciente. O acompanhante não pode deitar de jeito nenhum.

Me assustei com tanta inflexibilidade e fiquei conversando com meus botões: - Tudo bem, não “tô” nem fazendo questão dessa cama dura mesmo. Fica com ela pra você.

Prepararam Alida e pouco antes das nove levaram minha amiga para a sala de cirurgia. Sentei na cadeira, fiz um pensamento positivo para ela, abri o livro e comecei a ler. Li, li bastante. Depois de um tempo me arrumei de lado na cadeira, ajeitei a posição e continuei lendo. Li mais um bocado e virei para o outro lado na cadeira. Li mais um tanto e a bunda já pedia socorro, sem contar o ar condicionado que, cá pra nós, devia estar meio desregulado, aquele frio não era normal.  Escorreguei o quadril no assento na esperança vã de, talvez, aquela peça de mobiliário insensível se compadecesse de mim e, milagrosamente, reclinasse o encosto. Mas não aconteceu. Também já me incomodava todo aquele tempo com os pés para baixo. Dei uma olhada para a cama e na mesma hora desviei o olhar. Nem pensar garota, lembra da assepsia da cama e da saúde de sua amiga, isso sem falar na enfermeira nazista. Olhei de novo e na mesma hora esqueci todos os pensamentos anteriores e só imaginei o conforto de minhas pernas para cima descansando sobre aquele colchão macio. Acho que não tem problema colocar os pés aqui no cantinho. Botei as pranchas sobre a cama, relaxei e continuei minha leitura. Mas não demorou muito e começou o outro tormento. O frio era insuportável. Eu não tinha idéia que esse hospital funcionava como frigorífico clandestino nas horas vagas. O tempo passou e a posição estava confortável, mas não conseguia me concentrar na leitura porque o barulho do meu maxilar batendo de frio era ensurdecedor. Vou reclamar! Não, não vou reclamar! Será que o convite informava que o traje era esquimó completo? Eu não li. Levantei e comecei a investigar tudo no quarto, o objetivo era me movimentar. Abri o pequeno armário, estudei os objetos, a estrutura da cama, o controle das funções da cama e, quando não tinha mais nada para fazer, fui tomar um café lá fora.

Voltei para o quarto e comecei a ler novamente com as pernas para cima. Aproximadamente onze e meia alguém mexeu na porta e eu dei um pulo em pé, morrendo de medo que a enfermeira fundamentalista islâmica me visse toda espalhada com os pés na cama. Mas não, era o médico. O Doutor era um velho conhecido, o mesmo que me operou dois anos antes e namorado de outra amiga. Conversamos e ele me deu excelentes notícias sobre a cirurgia. Logo Alida estaria no quarto (e eu pensando: nada de perna para cima de novo). Continuando, ele informou que entre doze e doze e trinta nós estaríamos liberadas. Liguei para os pais de Alida e tranqüilizei-os, tudo estava dentro dos conformes.

Meio dia trouxeram a operada para o quarto. Ela estava bem, com boa aparência. Um pouco pálida, talvez, os lábios brancos, tinha uma touca na cabeça, usava aquelas batas de hospital e tinha nas pernas, operadas e rígidas, mais atadura que a mais caprichada múmia da dinastia de Tutankamon. É, pensando melhor, não tinha boa aparência. Mas isso não era o mais importante, a cirurgia tinha sido um sucesso. Estava acordada, mas um pouco grog ainda pelo efeito da anestesia. Então, perguntei:

- Como você está?

- Ela balbuciou algumas palavras dizendo: - ... ... ... ...!!

Não tenho idéia do que ela disse, mas não importa. Alida aos poucos foi recobrando a consciência e melhorando um pouco a fala. Logo depois entrou outra enfermeira, perguntou tudo, explicou tudo e no final saiu com a pérola:

- Entre três e três e meia o anestesista deve passar aqui para liberar vocês.

Pensei: - Ei, espera aí! Como assim “três e meia”? E toda aquela conversa de meio dia livre com atestado para o dia todo?

Com toda a tranqüilidade argumentei: - Mas o médico esteve aqui e disse que até meio dia e trinta estaríamos saindo.

E a enfermeira respondeu: - Mas quem libera é o anestesista, quando termina o efeito da anestesia.

Que ótimo, pela articulação da fala de Alida até meia noite a gente está em casa com certeza. A enfermeira saiu e eu não conseguia mais ficar sentada e não conseguia mais ler nem uma placa de trânsito. O que eu poderia fazer para passar o tempo? Pensa, pensa. Claro! Eu estava numa fase super puxada no treino de Kung fu, me preparando para o exame de faixa, tentando treinar todos os dias. Aquele lugar era perfeito para praticar. Afastei os móveis para abrir espaço e comuniquei para Alida minha intenção. Ela arregalou um par de olhos imensos e tentou levantar o tronco, parecia mesmo entusiasmada. Então ela começou a falar gesticulando numa linguagem toda enrolada um monte de palavras que não entendi, mas tenho certeza que era qualquer coisa tipo “ótima idéia” ou talvez “que bom, vai ser maravilhoso para a gente se distrair”. Sendo assim, comecei a treinar.

Iniciei com as defesas pessoais, passei para golpes e depois para o kati, que no Kung fu é o equivalente ao kata do Karatê. O kati tem que ser perfeito: técnico, plástico, cheio de energia. Reduzi o espaço das movimentações, mas tentava fazer os golpes corretamente. Ha! Siki! Ik! Que são os Kiais, aqueles gritos que a gente solta junto com os golpes. Acho que Alida estava empolgadíssima, porque ela não parava de se mexer a cada movimento mais brusco meu e falar sem parar coisas que eu não entendia. Até que Ha! Acertei o soro de Alida, que ficou balançando para um lado e outro puxando a agulha que estava enfiada no seu braço. Com o barulho que fez e o grito que Alida soltou, a primeira coisa que pensei foi na enfermeira bisneta de Conan, o bárbaro. Imaginei ela entrando pela porta com uma espada para me fatiar em centenas de pedaços. Depois lembrei que, talvez, Alida precisasse de socorro. Será que ela está bem? Tirando a poça de soro que fez embaixo do acesso da agulha e o fato dela estar um pouco mais pálida e quase sem sentidos, tudo parecia estar normal. Mas, por via das dúvidas, suspendi o treino.

Fomos liberadas às duas e meia, não sei por que. Levei Alida para casa e saí com a sensação de dever cumprido. Tudo havia sido perfeito. Quando cheguei em casa já eram quatro da tarde e eu estava quebrada daquela cadeira dura, de modo que não pude curtir muito as duas horas livres que me sobraram. Quanto a Alida, ela saiu com atestado para quinze dias, mas já têm uns vinte dias que ela operou e ainda não voltou para o trabalho. Tenho pensado em passar uma dessas tardes com ela, para distraí-la, acho que ela vai gostar.