“Vestibulanda vai parar no canal da Doca”. Foi
a manchete que papai, recém chegado de
uma viagem, leu em “O Liberal”, jornal de maior circulação no norte do país.
- Que absurdo! -Ele
exclamou.
Mamãe retrucou: - Querido, olhe direito a foto, essa
menina não te parece familiar?
- Ele respondeu: - Eu
não acredito!
Sim, era eu. Na foto
estava rindo, solitária, dentro do canal da Doca, que, para minha sorte, estava
vazio. Não pulei, fui jogada durante a comemoração pelo êxito no vestibular.
Essa e muitas outras histórias deliciosas vieram à tona na última sexta-feira,
numa noite que começou com a proposta de um bate-papo regado a um jantar, às
21h, e terminou às 5h30 da manhã, com todos dançando ao som da “Festa Ploc 80’s”, com direito a “Como uma Deusa” de Rosana e “He-man” do Trem da Alegria. Viver longe da terrinha onde crescemos, estudamos e viramos
gente é muito louco. Se, por um lado, expandimos um bocado nossos horizontes,
por outro, corremos o risco de perder pelo caminho pessoas imperdíveis. Nessa temporada em Belém tive o
prazer e a sorte de, por acaso - se é que acasos existem -, reencontrar algumas
dessas figuras: tio Gema, Silvana,
Ricardo, Bailosa, entre outros.
Conheci essa turma aos 17 anos, em agosto
de 1986. Tinha acabado de voltar de um intercâmbio cultural, que durou seis
meses, para ingressar no 3º ano científico e, em cinco meses, enfiar goela
abaixo todo o conteúdo programático da prova do vestibular. Na época, não
existiam tantas opções de faculdades como hoje. Para o curso que almejava –
engenharia civil – havia a federal (nossa UFPa)
e uma faculdade particular. As expectativas e cobranças sobre mim não eram
poucas. Consegui ir para o intercâmbio, no ano do vestibular, a custa de meses
de argumentação e insistência com meus pais, com o compromisso selado de, ao
retornar, viver somente para estudar e passar no famigerado exame da
universidade. Para completar a pressão, dois anos antes, meu irmão mais velho
tinha passado em 1º lugar na federal, também em engenharia. O
prognóstico eram alguns meses de trabalho duro e uma chata rotina de estudo.
Mas, para minha surpresa e felicidade, não foi bem o que aconteceu. Estudei
bastante, é verdade, e o resultado não poderia ter sido melhor, mas foram
também, provavelmente, os meses que mais farreei.
As provas na UFPa eram divididas por
áreas e, para a área de exatas, a ênfase
eram nos testes de física e matemática. Em função disso, além de cursar o 3°
ano, no outro turno freqüentava um curso
específico dessas disciplinas. Tio Gema, então com 29 anos, era o dono do curso
e o professor de matemática. Silvana,
sua mulher, com 27, cuidava de toda a parte administrativa. Como anteriormente
meu irmão tinha feito o mesmo curso com um resultado tão satisfatório, meus
pais tinham o casal na mais alta conta. Não demorou muito, nossa turma e eles
tornaram-se uma grande família. Muitas aulas, estudos, simulados de provas,
viradas de noite em sala de aula, mas também muita farra, o Passo da Ladeira, o
Karaokê, os botecos, o café da manhã no Hilton. Por estar acompanhada do considerado
casal, meus pais me liberavam com uma facilidade que não encontrava em qualquer
outra situação. Era o que se podia chamar de “dar asa à cobra”. A mim, restava
aproveitar. O grupo era ótimo. Além dos
já citados Ricardo e Bailosa, tinha Kalume, Ângela, Capilé, Márcio, Bello, Crispino,
Helton, Pingarilho,
Jaqueline, João Cralos, Cíntia
e muito, muito mais. Eram tantas “peças raras” que esgotaria o blog para falar
dos nomes e, principalmente, de suas excentricidades. Nossos mentores
conseguiam um equilíbrio tão mágico entre a obrigação e o prazer que as atividades se confundiam e acabava sendo tudo
muito prazeroso. No final, pasmem, acho
que passamos todos e, o que é melhor, na federal.
A turma se dispersou e cada um começou a seguir seu caminho. Ficou um núcleo de
umas dez pessoas que ainda andou junto por muito tempo e, dentro desse núcleo,
Tio Gema, Silvana, os dois filhos do
casal – Renata e Neto -, que ainda eram
crianças, Ricardo, Kalume e eu, vivíamos
juntos. Ricardo era um xodó. Éramos
grandes amigos e confidentes, e não
entendo muito bem porque todos os meus namorados não gostavam dele, assim como
todas as suas namoradas implicavam comigo. Kalume,
com um humor sarcástico, era o mais centrado de todo o grupo. Renata e Neto eram crianças de menos de 10
anos, e como não podia ser diferente, ateavam fogo no molhado. Quanto ao casal,
eles são um parágrafo a parte.
Ele é uma figura apaixonante. Ao falar de seus projetos,
realizações, trabalho, amigos, seus olhos brilham com uma empolgação quase infantil. O céu é o limite,
mas com um diferencial: ele não é mais um sonhador, é um realizador de sonhos.
Ela é uma mulher inspiradora. Guerreira incansável, sensata, justa e dotada de
uma intuição digna de estudo. Prova viva de que las brujas hay.
Depois do cursinho pré-vetibular, os dois abriram em Belém uma
franquia de um colégio que já era conceituado em outros estados, onde trabalhou
grande parte de seus pupilos, inclusive Ricardo, Bailosa e eu. Tínhamos 19 anos e, no meu caso,
foi o primeiro trabalho com carteira assinada. Oficialmente, eu era auxiliar do
professor de educação artística, mas, de fato, encarava sozinha a sala de aula
de turmas do 1° e 2° ano científico, e “tocava horror” com laboratórios malucos
de teatro. Me lembro de uma vez que o outro sócio do colégio, estranhando o
barulho e a música alta em sala de aula, reclamou com tio Gema, que
respondeu:”- deixa que ela sabe o que está fazendo.” Hoje, não tenho tanta
certeza assim. O colégio cresceu e, com o grupo de Belém, abriu várias outras
unidades no interior do estado e em outras capitais. Depois veio um projeto grandioso, visionário, unindo educação
e meio ambiente, num tempo que ainda não se falava tanto nisso. Mas o
financiamento pleiteado não saiu, e todo
o investimento feito se perdeu. Meus amigos quebraram e passaram o pior perrengue financeiro de suas vidas. Nós
estávamos lá, choramos juntos. Vimos toda a ascensão e, sem poder fazer nada,
assistimos de braços cruzados a queda brusca. Passado o período de reflexão,
eles foram à luta, com nada mais do que a cara e a coragem. A essa altura, meu
caminho já estava distanciando-se e, não demorou muito, me mudei para uma pós
em Salvador.
Nesse período, tive algumas notícias deles. Que estavam indo bem, prosperando,
que as crianças cresceram, que Renata se
transformou numa mulher linda e teve uma filha, que Neto casou. Tudo de longe.
Ao reencontrá-los, vi que era muito melhor. Os dois continuam lindos,
harmoniosos, apaixonados pela vida, pelo trabalho, pela família. Recentemente,
ele recebeu um importante prêmio na
cidade, coferido anualmente a
profissionais de grande destaque, reconhecimento mais do que justo pelo
consistente trabalho na área da educação e por seu bem sucedido empreendedorismo, premiação que estendo à Silvana, como ele também o fez ao receber o prêmio.
Foram muitas voltas, mas juntos parece que ainda somos o mesmo grupo.
Aproveitamos o reencontro para começarmos a organização de nossa festa de 21
anos de conclusão do colégio, nossa maior idade, alcançada este ano.
Democraticamente, elegemos toda a diretoria
da festa, com algumas funções definidas. O evento já tem local e data marcada:
dia 20 de dezembro de 2007. Portanto,
tratem de mexer esses traseiros gordos. Eu não vou esquecer.