quarta-feira, 14 de outubro de 2009

O perigo mora ao lado

Ai “Jisus”! Não quero fazer alarde, nem muito menos bancar o “cavaleiro do Apocalipse”, mais me sinto impelida por minha responsabilidade social a dividir com o maior número de pessoas possível as informações que recentemente entraram em minha vida como uma avalanche.




Atualmente estou lendo, interessadíssima, uma publicação sobre os "sociopatas", ou podemos chamar também de "personalidades anti-sociais", ou "personalidades psicopáticas", ou outras tantas identificações, mas que referem-se à mesma coisa: os terríveis, assustadores e enigmáticos "Psicopatas". O livro é uma publicação séria, talvez um pouco sensacionalista e repetitiva, de uma psiquiatra que nos últimos tempos caiu nas graças da mídia. Em seu trabalho ela aborda os traços mais característicos da personalidade destes seres, a forma como costumam agir e o elevado potencial destrutivo inerente à sua natureza.

Segundo a autora, os psicopatas são indivíduos que têm suas funções cognitivas em perfeito estado, mas são desprovidos da capacidade de sentir afeto genuíno, ou, como ela mesma afirma, incapacitados de amar. Conseqüentemente, lhes faltam ética, moral, solidariedade, compaixão e por aí vai. Em geral são pessoas inteligentes, articuladas, sedutoras e agradáveis, mas não se iludam, para atender às suas ambições mais fúteis são dissimuladas e capazes de atos sórdidos, insensíveis e cruéis, planejados em detalhes e executados com precisão. Em geral, temos a tendência de associar a palavra psicopata àqueles “miseravões”, matadores sanguinários, tipo serial killer, mas a maldade pode ser bem mais sutil.



Até aí, tudo ótimo, afinal, informação nunca é demais. O problema é que, involuntariamente, alheia ao prudente distanciamento crítico, às vezes as informações começam a associarem-se a fatos da vida real, de nosso cotidiano, correndo o risco de extrapolar o limite da razoabilidade e criar um universo paralelo onde tudo e todos atingem facilmente a categoria de suspeitos, com sérios sintomas de psicopatia. Desde que iniciei a leitura, transformei meus ambientes de convívio em laboratórios e meus amigos, colegas e conhecidos em estudo de caso. Contrariando os que dirão que como psiquiatra sou uma excelente arquiteta, nas próximas linhas não vou me ater apenas a relatar fatos verídicos, e preocupantes, de pessoas que fazem parte do meu convívio. Instrumentalizada com os fundamentos recém adquiridos, vou me aventurar por terrenos movediços para uma leiga, analisando os desvios de caráter dos envolvidos.



Para começar, para qualquer pessoa com o mínimo de clareza e de bom senso, qual é o candidato número um a psicopata frio e calculista? O chefe, sempre, é claro! E quanto mais imediata for a chefia, mais elevado tende a ser o grau de psicopatia. A minha chefinha é um caso clássico. Ela é bonita, muito articulada e bem relacionada. Sorrindo, submete com requintes de crueldade seus subordinados às tarefas técnicas mais estapafurdias. As jornadas de trabalho propostas são absolutamente insanas, chegando a mais de trinta horas semanais, vampirizando todos até a última gota de sangue. Em geral, consegue manter a fachada de profissional equilibrada, mas quando a máscara cai, aos berros revela sua verdadeira face: ciumenta, possessiva e controladora. Em seu ambiente de trabalho é inadmissível reunir mais de duas pessoas sem sua presença, ou a confraternização é caracterizada como motim de cunho altamente subversivo, com sanções severas. Desconfio de suas ambições, mas pela frente ela vai se deparar com outro chefe, igualmente suspeito: o diretor do departamento. Alicerçado na inteligência privilegiada, na leitura dinâmica e no raciocínio extremamente célere, congrega rapidamente as informações manipulando-as conforme suas conveniências. Letrado em direito e na área um, usa sua habilidade com as palavras para justificar suas alterações comportamentais que culminam em rompantes de fúria, quando suas orientações expressas são sumariamente ignoradas. Se um sozinho é uma grave ameaça, os dois juntos constituem o prenúncio de problemas de dolorosas implicações.

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Uma característica constante nos elementos com esse distúrbio psíquico é buscar ocupar posições estratégicas para suas pretensões. Nesta linha de pensamento, uma função bastante almejada é a de secretária, que tudo ouve e tudo sabe. Na empresa que trabalho temos um exemplo. Ela secretaria os assessores da diretoria do departamento e, vamos considerar, “ô baixinha sangue ruim”. Essa pessoa não pode ser considerada exatamente uma psicopata. Pela estatura, ela poderia ser enquadrada, no máximo, como uma psico”patinha”. Para um olhar desavisado pode passar por uma mulher sã, desembaraçada e simpática, apesar de temperamental. Mas, determinadas atitudes denunciam sua perversidade sórdida. Por exemplo, sua recusa doentia em assinar por mim meu ponto de freqüência quando me atraso, negando o favor com absoluta frieza e insensibilidade. Isso não pode ser um comportamento normal de uma criatura que tem a capacidade de nutrir afeição, ainda mais porque o favor é suplicado com tanto carinho e emoção. Considero ela um perigo iminente para o grupo.



O quê dizer, então, de meu namorado? Por algum tempo aquela conversa mole me envolveu de uma maneira que impediu a compreensão racional dos fatos. Agora, começo a ter um entendimento melhor. Ele é capaz de atingir o êxtase em caloradas discussões travadas com call centers dos mais diversos produtos e serviços, em embates diários que chegam a durar horas, preterindo, inclusive, uma deliciosa companhia feminina. Além disso, um companheiro que não aparece com mimos surpresa em datas improváveis e que não leva café da manhã na cama para a sua amada, não pode ser boa coisa. Tecnicamente, poderia ser considerado como um psicopata de grau elevado, pelas conseqüências nefastas de suas ações, ou falta delas, num coração sensível. Mas vou enquadrá-lo inicialmente num grau moderado, pois os danos podem ser remediados caso ocorra uma imediata mudança de atitude, tipo um presentinho hoje mesmo.



Outro indivíduo exacerbadamente suspeito é o síndico do meu condomínio. As tais taxas extras só podem ser coisa de quem não tem uma gota de sentimento e afeto por nossos rendimentos. E a frieza e a indiferença com que somos avisados reforça minha tese. Geralmente são correspondências impessoais, como quem dialoga com uma caixa registradora, que fazem rodeios e mise-em-scène de motivos para no final nos golpear duramente. Esse senhor me preocupa e deve ser vigiado de perto.



Apesar da inquestionável eloqüência dos relatos e argumentos acima expostos, que baseiam minhas suspeitas quanto ao caráter patológico dos estudos de caso, devo registrar que o diagnóstico está numa etapa clínica bastante inicial, sujeito ainda a retoques. Contudo, já é possível constatar, mesmo sob a tutela do inseparável otimismo que me caracteriza, que o mundo é sim um lugar perigoso para passear, trabalhar e viver, e a natureza humana pode ser, por vezes, surpreendentemente desagradável. Portanto, concluo este aprendiz de laudo clínico afirmando que a palavra de ordem deve ser “cautela”, pois o inimigo espreita e o perigo pode estar ao seu lado.


sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Brinquedinhos imprevisíveis



Quanto mais a hora da partida aproximava-se, mais aquela bendita "lista de coisas a fazer antes da viagem" atormentava a sua paz. No início, nada menos que 90% das coisas resolvidas eram admissíveis, depois passou para 75%. O tempo correu e 40% já eram negociáveis. Agora, a poucas horas de entrar no avião rumo à BH, qualquer coisa em torno de 7,5% era completamente aceitável.

Havia alguns meses que a viagem estava sendo minuciosamente planejada, junto com uma turma de quase trinta pessoas. O motivo? Uma amostra internacional de teatro na capital mineira. Ela, como uma das protagonistas do grupo, não poderia ficar de fora desta. Aproveitando a oportunidade, convidou o maridão para acompanhá-la, afinal, nenhuma oportunidade de quebrar a rotina de um casório de 29 anos pode ser desperdiçada. Antes de fechar a mala, o toque final: escondeu lá no fundo o brinquedinho surpresa que estava levando para o seu amor. Ele não perdia por esperar.

O apetrecho estava comprado há algumas semanas, aguardando a hora certa para ser usado. A compra em si já foi uma festa a parte. Uma senhorita em cima de um belo salto chegou a seu local de trabalho carregando uma maletinha rosa choque, tão inocente como os acessórios da doce Barbie. Enquanto passava pelas mesas do escritório falava com uma e outra, até chegar ao fundo da sala, onde sentou, cruzou as pernas, descansou a maleta sobre o colo e abriu o recipiente como quem abre "as portas da esperança". Daí para frente ninguém pode conter aproximadamente 10 mulheres enlouquecidas beirando o estado de luxúria. Da malinha saíram várias preciosidades, entre elas óleo comestível de massagem, calda quente de menta, pasta de uva, pomadinha picante, canetas com tinta comestível, peças íntimas de vestuário e joguinhos eróticos. Ela encantou-se com tudo. Inicialmente pensou em levar a calda de menta e a pasta de uva, já pensando no slogan de propaganda "senta que de menta e chupa que é de uva". Depois resolveu comprar o baralho de posições e uma caneta sabor doce de leite. Como não segurou a onda, inaugurou o baralho logo no fim de semana seguinte e esforçou-se bastante para executar com precisão os contorcionismos propostos, ignorando inclusive os efeitos lombares e cervicais que, com toda certeza, perdurariam por vários dias. Agora era hora de inaugurar a caneta de doce de leite, e só de pensar lhe dava água na boca.

Tudo em relação à viagem foi decidido entre o grupo de teatro: o local da estadia, as peças a serem encenadas e as apresentações imperdíveis. O item "hotel" foi um parto a fórceps. Uns achavam caro demais, outros achavam ruim demais, outros, longe demais. Depois de muito "trololó" e pesquisas na internet chegou-se ao consenso quanto a um simpático hotel três estrelas, localizado no centro da cidade. Chegando lá, a conclusão que pareceu mais obvia era: as fotos expostas na internet não eram daquele lugar, ou as mesmas tinham sofrido uma séria intervenção no Photoshop. De qualquer maneira, a propaganda foi enganosa. O hotel era velho, feio e sujo, muito sujo. As três estrelas prometidas eram, possivelmente, as que podiam ser vistas ao cair da noite, pelos três buracos da cortina.

Os compromissos do evento internacional eram puxados, com apresentação todos os dias, não sobrando muito tempo para namorar. No penúltimo dia, os dois já na loucura por um momento a sós, deram um "zig" no grupo e se mandaram mais cedo para o hotel. No apartamento, tentaram abstrair-se do ambiente e concentrar-se no ritual. Ela procurou algo para vendar os olhos dele. Como naquele hotel não havia nada que pudesse ser chancelado pela vigilância sanitária, tirou a parte de baixo de seu babydoll e amarrou na cabeça do marido. A sorte é que de olhos vendados ele não podia conferir o resultado, mas era um armengue de dar dó. O short ficou todo contorcido, com metade da renda para cima e a outra metade para baixo, como um tapa-olho caído até a bochecha. Se não fosse pela cor da peça, verde cana, ele poderia até ser confundido com o capitão gancho fantasiado de baiana do acarajé, claro, depois de um arrastão dos mais violentos. Mas isso tudo não tinha a menor importância, ela ainda estava excitadíssima.

Cuidadosamente, ela o despiu e pediu com uma voz de seda para que ele se deitasse. Sacou a caneta e iniciou os desenhos pelo rosto, para percorrer todo o corpo em direção aos pés. Timidamente, começou com o básico: uma bola representando a cabeça e cinco tracinhos representando o corpo. Mais a vontade, deu asas ao romantismo, com coraçõeszinhos e uma casinha no alto do morro. Depois ousou com flores, bichos exóticos e tribais. Na coxa esquerda anotou a receita da pamonha mineira que havia experimentado naquela tarde e, não contendo seus impulsos profissionais, rabiscou uma planta baixa, dois cortes e uma fachada frontal. Já que estava empolgada e com tempo sobrando, aproveitou para arquitetar as soluções do projeto pendente do necrotério estadual. A essa altura ela estava na canela, com o doce se misturando nos pêlos da perna. Curiosa para apreciar sua obra, deu uma olhada geral no conjunto.

Quando viu, não pôde acreditar. Não era possível enxergar um centímetro da pele do seu amor. O doce de leite virou uma calda melequenta que escorreu por todo o corpo fazendo com que ele parecesse um boneco de lama se desmanchando. Se a agonia da meleca não bastasse, ainda havia o risco de morte pelo fato dele ter alto nível de diabetes. Ele lá, de olhos vendados, todo deitadão, não entendia muito bem o que acontecia, mas estava apreciando tudo. Assustada, mas sem querer estragar o momento, partiu para cima dele com meio metro de língua, lambendo tudo que encontrava pela frente. Ele, evidentemente, foi à loucura. Já enjoada de tanto açúcar, buscou no banheiro uns pedaços de papel higiênico, que no primeiro contato com o doce, se desfizeram ficando pregados no corpo. Beirando o desespero, molhou a toalha e começou a esfregar nele com movimentos pesados, explicando tratar-se de uma técnica oriental de estimulação. Cansada, propôs logo os “finalmentes”. Tirou o babydoll que tapava os olhos dele e a brincadeira ficou animada, não obstante o prega-prega da coreografia.

Depois de tudo, ela não podia ver ou sentir a kilômetros o cheiro de doce de leite, e a idéia de um banho lhe pareceu a coisa mais excitante da tarde. Quando chegou ao banheiro, ao olhar-se no espelho teve vontade de chorar. Seus cabelos estavam em pé em pequenos grupos, como se tivesse sido vítima sem defesa de uma descarga elétrica de alta voltagem. Mesmo depois do banho, a cabeleira nunca mais voltou a ser como antes.

O evento acabou e, enfim, chegou a hora de voltar. O hotel, para redimir-se dos muitos contratempos, ofereceu para cada quarto um brinde surpresa, embalado para presente numa caixinha. Ele, muito feliz com a experiência, planejava ansioso a próxima viagem. Ela, um pouco enjoada ainda, ia precisar de um tempo maior para se animar. Já no avião, voltando para Salvador, ela resolveu conferir o mimo oferecido pelo hotel. Quando abriu quase caiu para trás. Era meia dúzia de tabletes do mais autêntico doce de leite mineiro. Com o estômago embrulhando, exclamou apressadamente em alta voz:

- Comissária, por favor, um saquinho urgente!!!

terça-feira, 29 de setembro de 2009

E você, também vai dançar?



Então atire a primeira pedra quem nunca passou pela solitária experiência de, na beira de uma pista de dança, ao som de uma convidativa melodia, sentir por dentro todo o seu corpo e alma dançando enquanto externamente, estático, estampa um sorriso amarelo de "eu hoje estou cansado". Os motivos podem ser os mais variados. Absoluta falta de habilidade, paralisante timidez, desconcertante escassez de par ou, pior, "enraivante" constatação de que o objeto de seu desejo está muito bem acompanhado. Não importa, seja como for, é frustrante. Quase todo mundo tem uma história engraçada, "ou não", como diria o filósofo Caetano, para contar sobre suas aventuras na pista de dança ou na beira desta. Já ouvi algumas, mas tem uma, em especial, que me diverte mais.

Tenho um amigo e colega de trabalho sergipano que é conhecido na empresa como pé-de-valsa. Sempre impecavelmente bem vestido, com uma fala grave, pausada e em tom moderado, vive escondido atrás de uns óculos, mas quando se espalha no salão ninguém junta. Segundo ele, quando era jovem, ia às festas com os amigos e enquanto a música rolava ficavam todos parados, as meninas de um lado e os rapazes de outro. De vez em quando os garotos sorteavam um mártir, que com muita coragem e resignação atravessava o salão como quem vai para a guilhotina e arriscava convidar a dama, quase sempre levando um toco que o deixava desconsertado pelo resto da noite. Revoltados com tantos mal-tratos, os garotos articularam-se e bolaram um plano no mínimo maquiavélico. Elegiam a mais "patricinhas", as bem sebosas mesmo e, em revezamento, viravam uma sarna atrás da vítima até que ela, para se livrar daquela moléstia, topava dar a honra de uma dança para qualquer um que fosse. Então os outros se posicionavam nas proximidades. A dança começava e quando a coitada já estava mais relaxada, talvez até gostando, o seu algoz a segurava firmemente pelos dois braços afastando-a uns dois palmos e dizendo em alta voz: - Você peidou!!!! - Depois disso o descarado saía sem mais explicação deixando a garota petrificada no meio do nada. Foi mais ou menos nessa época que o mercado de trabalho para psicólogos e psicanalistas “bombou” em Aracajú. Muitas garotas conseguiram superar o trauma e levam uma vida normal. Mas outras, atualmente senhoras, deixam pomposas somas nos consultórios de psicanálise até os dias de hoje.

Não faz muito tempo que as aulas de Dança de Salão popularizaram-se como a redenção para as famigeradas timidez e falta de habilidade. A atividade alcançou a mídia, virou argumento de filmes, pano de fundo de novelas e, no Brasil, até competição em instrutivo programa domingueiro de variedades, onde o intrépido apresentador, conhecido pela sutileza que mataria de inveja qualquer rinoceronte, nos brinda com apresentações de famosos dançando variados ritmos, e não posso negar que me delicio com o quadro.
Quanto à telona, Fred Astaire já fazia babar gerações anteriores, e aquele sim, sabia o que fazia. Mais recentemente, outros superstars não tão hábeis no bailado, mas muito mais talentosos no sexy appeal, como Antonio Banderas e Richard Gere, protagonizaram fitas que também giravam em torno do tema. O filme estrelado por Gere em 2004, por exemplo, que foi traduzido como "Dança Comigo", foi um remake de um filme japonês homônimo, de 1996, e trata de um advogado de meia idade um tanto entediado que encontra na dança de salão um sopro de alegria para sua vida. A versão americana desenrola a trama em torno dos dramas pessoais do protagonista. Já a versão original, a japonesa, propõe um elemento a mais, tendo em vista que no contexto nipônico tem-se também o paradoxo entre a introspecção da cultura oriental e a natural exposição da dança. No mais, tem aquele jeitinho todo especial das produções japonesas, que conseguem dizer tudo sem precisar falar nada. Seja como for, nas duas versões, bem como no “Vem Dançar” de Banderas, a dança quebra tabus e une diferentes tribos.

Como todo mundo, também já estive algumas vezes paralisada na margem da pista, mas quase sempre, por pior que seja o resultado, prefiro me arriscar nos rodopios. Sendo do Pará, adorava jogar os cabelos pra lá e pra cá ao som da lambada de Beto Barbosa, isso sem contabilizar o carimbó, o brega, o tecnobrega e por aí vai. Para um olhar mais especializado devia parecer uma afronta à boa dança, mas quem liga? Além disso, a herança genética me empurra para o meio do salão. Meus pais não podem ouvir uma música com um pouco mais de dois metros quadrados de área disponível que levantam e saem girando abraçados. Nesse embalo, são parceiros de dança há mais de quarenta anos e conseguiram disseminar por toda a prole o gosto pela brincadeira.

De olho nas benesses físicas, psicológicas e sociais que a atividade pode promover, empresas investem nas aulas como programa de valorização dos recursos humanos, e o órgão que trabalho embarcou nessa também. Contratou um casal de professores que com extrema paciência nos ensinam os segredos dos primeiros passos. Fácil não é, mas é gostoso. Alguns têm mais ritmo, outros mais coordenação e outros, bem, tem vontade, pelo menos. Não acho que chegaremos a uma companhia de dança, mas tenho certeza que vamos nos divertir.

Na nossa turma tem um colega, aquele mesmo do "você peidou!", que adora tirar uma onda de Richard Gere em "Dança Comigo". Ele freqüenta as aulas no turno da noite e não perde uma oportunidade de mostrar seus talentos, mas não falou nada em casa para a mulher sobre o curso. Num dia desses, um canal aberto da TV exibiu o citado filme. Ele fez de tudo para dispersar a esposa, mas não conseguiu tirá-la da frente do televisor no horário marcado. Enquanto o filme ia se desenrolando ele puxava outros assuntos, mas a patroa parecia hipnotizada pela fita e enquanto assistia, comentava:
- Mas olha o papelão que esse homem está fazendo, dançando por aí escondido da mulher e da família. Ah se fosse comigo!
Ele, cada vez mais encolhido na poltrona, tentava convencê-la: - Veja bem, ele não está fazendo nada de mais.    
Não tenho dúvidas que a atividade proporciona muitas coisas salutares, que vão além de uma boa oportunidade de exercitar o jogo da sedução ou dar um “zig” inocente na mulher. Fisicamente favorece o equilíbrio, a coordenação, o ritmo e até a queima de algumas calorias. Contudo, acredito que os maiores benefícios são relativos à autoestima. Numa sala espelhada você se vê mais, melhora uma postura aqui, dá um jeitinho no cabelo ali, observa seu movimento, sua silhueta, se conhece melhor, se aprecia. De modo geral, com espelhos ou não, temos a oportunidade de vivenciar um conjunto de situações que nos torna mais íntimos com nós mesmos. São detalhes, às vezes coisas que passam despercebidas, mas que ajudam a transpor o muro da timidez e fortalecer a autoconfiança. Paralelamente, num movimento antagônico ao da percepção de si mesmo, também faz o favor de nos expor, com direito a alguns deslizes, propiciando uma descontraída integração com os demais.

Dançar sincronizado com vasto repertório de passos, dançar o feijão com arroz levando umas pisadas aqui e ali. Dançar rápido, dançar lento, dançar para dar show, dançar para consumo próprio, acompanhado ou desacompanhado. Não importa muito, o importante é dançar para se divertir, para ousar, para transpor, para se permitir. Ei, e quanto a você que está aí lendo muito bem acomodado nesta cadeira, também vai dançar?

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

O Negro Gato


"Eu sou um negro gato de arrepiar

Essa minha história é mesmo de amargar
Só mesmo de um telhado, aos outros desacato
Eu sou um negro gato
Eu sou um negro gato".

Lá ia ele cantando. Na verdade a afinidade ia além do gosto pela melodia. Um negro gato era exatamente o que ele era: um bichano de pêlo curto e negro, estatura mediana para a espécie e uma soberba em nada compatível com a realidade. Falador, articulador e muito hábil no network , há algum tempo era considerado como um procurador dos interesses da comunidade “miante” do bairro, apesar de estar longe de ser uma unanimidade. Recentemente havia tomado para si a responsabilidade sobre a reforma do "beco da PGE". Nada a ver com a prestação de um serviço comunitário ou algo semelhante, ele pensava no upgrade que isso poderia render em seu status. Assim, tornou-se o maior militante da causa. 


O beco da PGE era o mais freqüentado ponto de encontro da turma do bairro. Um local para altos conchavos, cantoria, por o papo em dia e conhecer quem de novo pintava no meio da gataiada. Ficou conhecido como beco da PGE por conta de Mafalda, uma gata malandra, típica vira-lata, que andava por aqueles arredores em épocas passadas. Ela costumava dar golpes nos colegas, além de provocar a ira dos humanos, roubando quitutes deixados a vista por qualquer janela entre aberta. Certa vez, Francesco, um cozinheiro italiano de uma cantina do beco, conhecido por sua pouca paciência com os bichanos, deixou uma almôndega de isca sobre o balcão da cozinha, enquanto fervia um caldeirão de água. Quando Mafalda apareceu, não deu outra, despejou sobre ela a água fervente que, por sorte, pegou de banda. Desta vez não teve malandragem certa, Mafalda ficou “cheia de cheios e vazios”, parcialmente pelada. A bicharada, que não engolia muito a senhorita, não perdoou, e batizou o beco: "beco da Pobre Gata Escaldada", que mais tarde foi abreviado para "beco da PGE".

A empreitada da reforma era realmente grande. O beco precisava de tudo: reorganização do lay-out dos latões de lixo, penumbra adequada, isolamento acústico para possibilitar as serestas até altas horas e por aí vai. O Negro Gato contava com algumas parcerias. Tinha Tássio, um gatinho mestiço, rechonchudo, muito boa praça, que fazia o meio de campo com a comunidade, já que o Negro Gato não contava com a simpatia da galera. Os dois juntos lembravam Manda-Chuva e Batatinha, um sempre mandando e o outro sempre obedecendo, mesmo que a sabedoria notadamente não residisse na fonte do comando. Contudo, sua maior aliada era Sandra Espatódia, uma gata refinada, quase legítima angorá que, por qualquer contra-tempo, descia do salto e armava um barraco. Diziam as más línguas que ela tinha vivido um romance tórrido com o Negro Gato, que acabou com bate-boca e pancadaria de fundo passional, deixando o Negro Gato em recesso para reabilitação física durante algum tempo. Verdade ou não, o fato era que ele demonstrava um certo medo da dona. Apesar do grande interesse e empenho do trio, nenhum deles entendia nada do ofício. Tássio, bem relacionado, propôs que pedissem ajuda, e foi ele mesmo que sugeriu o nome: - Por que não falamos com Anita?

Anita era uma gata tímida, moradora da rua de cima, que nada investia em marketing pessoal, mas reconhecida pela extrema competência na área. Entre outras coisas, foi a mentora intelectual da reorganização do lay-out do "Beco das Flores", a projetista da reforma da "Esquina da Pata Suja" e a principal responsável pela revitalização da "Baixa do Corre do Tamborim", com o trabalho premiado pela UNICAT e destaque na revista Felino's News.

A idéia foi prontamente aceita, apesar das desconfianças de Sandra Espatódia. Tássio se incumbiu de agendar uma reunião. No dia marcado, lá estavam os três esperando quando surgiu Anita do outro lado da rua, com os sedosos pêlos brancos no balanço da leve brisa que soprava. Aquilo para o Negro Gato foi a visão do paraíso, seu queixo caiu alguns centímetros e foi impossível evitar a baba. Era como se tudo em volta estivesse congelado e só existisse Anita, atravessando a rua em movimentos lentos e graciosos. Acordando do transe, se recompôs rapidamente, reorganizou a postura, estufou o peito e partiu em direção à visitante, cheio de clichês, patas e dedos. Aquilo de cara assustou Anita que, apesar de simples, tinha o comportamento de uma "aristogata".

As reuniões foram sucedendo-se com muitas indefinições e algumas contribuições da comunidade. Mais latas de lixo ou menos latas? Ia ser prevista a circulação de roedores, com algum entretenimento relacionado, tipo pegue-e-pague, ou não? Já se falava até em erguer um monumento à Mafalda, a "Pobre Gata Escaldada". Neste ínterim, o Negro Gato, cada dia mais encantado, não perdia qualquer oportunidade de roçar os pêlos em Anita e ronronar próximo aos seus ouvidos. Ela, com total asco, fugia "como o diabo foge da cruz", mas a situação já estava chegando num ponto insustentável, agravada ainda mais pelas escancaradas demonstrações de ciúmes de Sandra Espatódia. O Negro Gato sacava tudo e com habilidade atiçava a discórdia que massageava seu ego doentio. Tássio, com excelente humor e senso de oportunidade, amenizava o clima e o trabalho ia se desenrolando. Aparentemente a situação parecia equilibrada, mas Sandra Espatódia era ardilosa e, enquanto forjava uma atitude mais calma, armava um plano para atingir sua arqui-rival.

Anita, apesar de circular livremente pelas ruas, era a queridinha de uma madame moradora de um dos mais tradicionais edifícios do bairro. A senhora mantinha em seu luxuoso apartamento uma almofada confortável de penas de ganso, sempre limpinha, para o deleite de sua pequena. Por conta disso, Anita carregava no pescoço uma medalhinha de identificação, o que liberava sua passagem nas dependências do prédio e lhe dava um ar ainda mais distinto. Contudo, já haviam alguns dias que a tal medalha andava perdida, e isso deixava a gata angustiada.

Quando chegou o primeiro dia de lua cheia do mês, uma turma de gatos não identificados armou na frente da residência da madame uma algazarra sem precedentes. A cantoria e bateção de latas perdurou até altas horas da madrugada. A viatura da polícia esteve no local duas vezes, tentando dispersar o movimento, sem obter sucesso. Ao amanhecer o cenário era catastrófico. As latas de lixo estavam reviradas e havia resíduos de natureza diversa espalhados pela rua, passeio e até entrada da portaria. No meio de tudo, foi achada a medalhinha de Anita. A sentença do síndico e conselheiros do prédio foi imediata: Anita estava terminantemente expulsa daquela Maison. Enfim o mistério que tanto lhe preocupava foi esclarecido, sua medalha desaparecida estava com Sandra Espatódia, que soube usá-la muito bem. Desolada, a gatinha saiu meio sem rumo, cantarolando em murmúrios melancólicos:

"De manhã eu voltei pra casa
Fui barrada na portaria
Sem filé e sem almofada
Por causa da cantoria"

Ainda fragilizada, ela levantou a cabeça e tocou a vida, mergulhando fundo na reforma do beco da PGE. Conciliou interesses, harmonizou propostas e fez questão de cuidar sozinha do tão esperado monumento à Mafalda. No dia da inauguração estavam todos lá: a gataiada do bairro, os amigos, a imprensa e até algumas autoridades. O beco estava irreconhecível, sofisticadamente lindo e original. O Negro Gato não podia conter-se de tanto orgulho. Todos o congratulavam apesar de terem absoluta convicção de que a mente pensante por trás de tudo era a de Anita. A inauguração do monumento à Mafalda, que estava coberto por um manto encarnado, era o momento mais aguardado da festa, e seria uma surpresa para todos, já que Anita providenciou tudo sozinha. Na hora marcada, o Negro Gato pegou o microfone e, após um enfadonho discurso de auto-promoção, anunciou com toda a pompa e circunstância a homenagem à gata que deu o nome ao beco, puxando com um movimento brusco o manto que cobria a escultura. Foi quando ouviu-se um longo "oooohhhhh!!!!!", seguido de risos e muitas gargalhadas.

Para o espanto geral, a escultura retratava com impressionante perfeição a imagem do Negro Gato vestido com uma ceroula, na fisionomia uma expressão de dor e medo, encolhido numa postura ultrajante para o gênero masculino, tentando se proteger de Sandra Espatódia. Esta, na obra de arte, estava em posição ameaçadora, com os olhos explodindo em ira, trajando um babydoll dois números abaixo do seu, com os pêlos enrolados em bobs e segurando um rolo de macarrão, que usava para espancar o Negro Gato. A imagem era grotescamente real. Aproveitando o burburinho e galhofada que a surpresa gerou, Anita saiu à francesa com um doce gostinho de vingança na boca, enquanto ensaiava timidamente alguns passos e cantava:

"Nós gatos já nascemos pobres
Porém, já nascemos livres
Senhor, senhora, senhorio
Felinos, não reconhecerás"

O beco da PGE continua um sucesso incontestável, divertido, polêmico e formador de opinião. Dizem até que foi em suas noitadas que foram lançados pelo menos dois dos principais candidatos ao mais alto cargo do Estado. Contudo, a sigla do aclamado beco, com todo respeito à memória de Mafalda, sua musa inspiradora, tem novo significado em homenagem a suas mais recentes celebridades, sendo hoje, então, "o beco do Pobre Gato Espancado"

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Atividade Alternativa


Recentemente, num curso de pós, a professora de "Sistemas das Organizações" foi categórica em afirmar que devemos ter uma atividade alternativa à nossa atividade oficial, e que, de preferência, esta atividade deve ter pouco ou nada a ver com nossa profissão. Segundo ela, o mercado de trabalho hoje é muito dinâmico e ninguém está seguro onde está, podendo vir a ter que se adaptar à funções pouco afins com as que exerce atualmente. Além disso, atividades diferentes oxigenam nosso cérebro e sempre abrem novas possibilidades.

O grande barato do estudo continuado é justamente esse, permanecer disposto a sacudir nossas idéias e paradigmas, mas esse toque não foi exatamente uma revelação para mim. Profissionalmente abracei a carreira de arquiteta, apesar de hoje muito pouco arquitetar e exercer mais uma função de gestora de projetos da área. Mas como alternativa profissional nunca almejei paisagismo, design, decoração ou qualquer coisa que passasse perto da arquitetura. Na verdade, me entreguei a delírios muito diferentes e nada ortodoxos. Sonho ser patinadora de supermercado, aquele pessoal que fica agilizando o vai e vem de produtos pelos corredores da loja. Imaginem, ser paga para passar o dia inteirinho deslizando sobre patins num piso lisinho como uma peruca depois da chapinha, desviando de uma prateleira aqui, de um cliente ali. É a glória! Também considero com carinho a idéia de ser bailarina de banda de música de grande sucesso. Tenho uma certa intimidade com a dança e, sobretudo, adoro o ofício. Então, nada melhor do que unir o agradável ao rentável. Acordar pela manhã com a dura tarefa de ter que dançar por horas ensaiando, concluindo o dia com uma apresentação para alguns milhares de pessoas gritando enlouquecidas pelo show. Se não bastasse tudo isso, ainda ter que viajar em turnês pelo país e até pelo exterior. Parece um sonho. Por mais bizarro que possa parecer, quando entro neste transe só me vem à cabeça a banda "Calypso" com seu frenético tecnobrega. Cada um tem o sonho que merece.

Contudo, os fatos têm revelado que não sou a única acalentar o sonho de atividades desconexas com a oficial. Vejam o caso daquela professorinha de Salvador, que durante o dia dedicava-se candidamente ao magistério para a primeira infância em uma escola particular da capital baiana, e à noite, ao apagar das luzes, se liberava ao som do pagode "todo enfiado" na picante casa de shows Malagueta. Reconheço que seus remelexos estavam longe de ser um inocente ofício, mas nesta história não consegui ainda identificar o que é mais deplorável. Se é a própria coreografia ou se é a nojenta hipocrisia da mídia e da sociedade, que ora festeja o estilo musical e suas coreografias vulgares e ora, sedentos de notícias sensacionalistas e seus respectivos "Judas", aclamam a mulher como inimiga pública número um, num uníssono "joga pedra na Gení", adormecendo no esquecimento escândalos políticos muito mais ofensivos para a moral e os bons costumes. Opiniões a parte, a gente tem que reconhecer: a moça tinha um certo talento para o show business. Com a celebridade alcançada depois do post no "You Tube" e as mais de cem mil visitas, acho que a garota considerou a possibilidade de tornar esta a sua atividade principal, fazendo a extravagância de atuar paralelamente, na surdina, quem sabe, como docente do ensino infantil.

Existem, contudo, aquelas atividades que não são programadas, nunca foram objeto de desejo e não tem nenhum glamour, mas quando menos se espera o talento bate a porta de uma forma tão contundente que fica difícil ignorar. Assim aconteceu com uma amiga. Ela estava indo muito bem na sua vida profissional no serviço público, com o trabalho reconhecido e grandes perspectivas de crescimento. Dinheiro também não era o problema, e a vidinha seguia seu curso de forma muito tranqüila, beirando o enfadonho. Em um belo dia, quando chegava para a labuta, se deparou com alguns colegas de trabalho cumprimentando outro colega. Alegre e solícita como sempre, de longe veio pulando e cantando:.
- "Parabéns pra você, nesta data querida, muitas felicidades, muitos anos de vida".
Quando alcançou nosso amigo, pulou sobre ele com um forte abraço e alguns beijos. Não contente, sem dar tempo para o cara sequer respirar, emendou:

- "A chuva cai, a rua inunda, ô fulano eu vou comer seu bolo. É vatapá, é carurú, ô fulano eu vou comer o seu bolo."

Quando acabou, ofegante com tanta felicidade e diante dos olhares estupefatos dos demais, disse:

- Eu não sabia que era o seu aniversário!

- Não é! - Respondeu ele, continuando: - foi meu pai que morreu.

Apesar do absurdo da situação, o mico quebrou o clima e relaxou inclusive nosso colega em luto. A história correu os corredores da empresa e, tratando-se de uma pessoa tão sensível e inteligente, pensamos todos que ela havia, a duras penas, aprendido a lição. Como a gente se engana com as pessoas. Poucos meses depois, novamente quando chegava para o trabalho, ao abrir a porta viu duas colegas de trabalho abraçadas. Sem pensar duas vezes, já saiu gritando:

- Amiiiiiga, não sabia que era seu aniversário. "É big, é big, é big, é big, é big! É hora, é hora, é hora, é hora, é hora! Ah! Tchim! Bum! Êêêêêê!!!!!!!"

A louca foi tão segura nas suas afirmações que acabou confundindo todo mundo. A que estava sendo abraçada virou para a que estava abraçando e perguntou:

- É seu aniversário?

- Não! - Respondeu ela. - É seu?

- Não! 

Foi só então que a desvairada resolveu perguntar: - Então qual é o motivo de tanto abraço?

A abraçada respondeu: - Foi meu irmão que morreu!
A trapalhada foi tanta que a história chegou a mim por nossa colega que havia perdido o ente querido, confessando que, apesar de tudo, também deu suas risadas.
Diante da repercussão dos "causos" e os consecutivos comentários e incentivos, minha amiga começou a vislumbrar a possibilidade de lucrar com seus talentos naturais. Não demorou e apareceu logo uma candidata à sócia que, com talentos semelhantes, costuma atrapalhar-se nos cumprimentos das cerimônias fúnebres, distribuindo parabéns para todos os parentes do defunto. As duas abriram uma empresa que tem a finalidade de animação de velórios, enterros, missas de sétimo dia, cerimônias de cremação e semelhantes. Os negócios vão de vento em pôpa e as empresárias já estão estudando a possibilidade de abrir franquias com a venda do know-how. São realmente garotas empreendedoras. Admiro a criatividade e atitude, mas peço a Deus não ter a oportunidade de prestigiar seus serviços tão cedo. 

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Corta o cabelo de onde?


Todo mundo passa por aqueles dias que é melhor não abrir a boca. Com a maior parte das pessoas isso acontece um dia ou outro. Comigo é mais freqüente. O problema maior é que a gente nunca sabe quando acordou com esta pré-disposição. Tanta tecnologia disponível e ninguém se tocou de bolar um alarme no celular para nos prevenir nesses dias sombrios. Ou talvez "os céus" pudessem nos proteger das derrapadas com inspirados presságios. Seja como for, alguém precisa tomar uma providência.

Como não me dou muito bem com os celulares e não costumo ser abençoada com tais revelações divinas, lá vou eu toda serelepe e desavisada para mais um dia de trabalho. Passei o dia até bem e parecia que ia voltar para casa sem nenhuma seqüela. Era o quê parecia. Lá pelo final da tarde, conversava com minha chefona, que é mais ou menos um feitor dos tempos modernos. Quando trocávamos algumas figurinhas chegou Aragon, nosso colega de trabalho. Só para ilustrar o tamanho da trapalhada que vem pela frente, vou descrever nosso personagem. Aragon é um engenheiro de segurança de cinqüenta e poucos anos, sério e muito tímido. Para termos uma idéia, ele fala de boca fechada. Quando está muito nervoso e alterado chega a abrir a boca cinco milímetros e meio e, se chegarmos a dez centímetros da fonte emissora do som, é até capaz que a gente consiga ouvir 70% do que ele fala. É um bom profissional, mas bem mais eloqüente na escrita. A “chefa” tinha alguns assuntos pendentes com ele e na mesma hora tirou o chicote do cinto e começou a cobrar os desdobramentos dos serviços.

Os dois seguiram debatendo os assuntos de trabalho. Na argumentação, Aragon, que normalmente é muito contido, gesticulava com as mãos na altura do baixo abdômen e região pubiana, com movimentos curtos e lentos. Como a conversa não era mesmo comigo, me permiti abstrair perdida nos meus pensamentos. Isso, para uma mente intelectual, significa absorver-se entre assuntos relevantes para a humanidade. Para uma cabeça loura, como é o meu caso, significa "só pensar besteira". Então, comecei a viajar nas mãos de Aragon, observando que seus dedos eram bem cabeludos, o que me lembrou um lobisomem ou, talvez, Tony Ramos, que é mais ou menos a mesma coisa. Era meramente uma observação, que faço questão de registrar que não me remeteu a nenhuma fantasia. Aprofundando-me mais na questão de alta complexidade, notei que, em uma das mãos, os dedos indicador e médio tinham os cabelos menores, como se tivessem sidos aparados. Totalmente alheia ao ambiente e às circunstâncias e, pior, no auge do meu surto delirante, usando um papel tipo ofício que tinha na mão, apontei para as mãos de Aragon, que nesta hora estavam na altura da região pubiana, e perguntei:

- Você corta o cabelo daí?????

Agora você, caro leitor, com todo o seu poder de imaginação, realize a cena. Imediatamente percebi o fora que tinha dado, mas a besteira já estava feita. Minha chefe, que estava de lado, como se estivesse em um filme em câmera lenta, virou a cabeça na minha direção e levantou o mais alto que pôde a sobrancelha de apenas um dos olhos. Sobre sua cabeça surgiu instantaneamente um balão com uma enorme interrogação mãe, rodeadas por inúmeras "interrogaçõeszinhas" filhas, brincando de roda em volta da genitora. Aragon, coitado, um pouco tonto ainda, lentamente baixou a cabeça e levantou a camisa, dando uma averiguada em sua calça. Sou capaz de apostar que ele pensou que estava com o zíper aberto. Quanto a mim, não me contive, desabei numa crise de riso, sem conseguir pronunciar uma palavra que pudesse explicar o ocorrido. Cinicamente, a chefona ainda teve o desplante de perguntar:

- Vocês querem que eu saia?

Com uma amiga dessas, quem precisa de inimigos? Continuei tentando pronunciar alguma coisa que pudesse ser entendida, mas os risos não deixavam, saindo apenas palavras cortadas.

- Nã-nã-não! - Dizia eu enquanto apontava as mãos dele, mas acho que isso só fazia piorar tudo. Meu colega, sem entender nada e expressando um certo medo de mim, já dava alguns pequenos passos para trás. Por fim, ainda sem parar de rir, consegui falar:

- Eu estou falando dos dedos!

A chefinha saiu rindo e Aragon, assombrado pelo terror de ficar sozinho comigo, bateu em retirada com passos largos e apressados. Fiquei enxugando as lágrimas da crise de riso, mas ainda sem conseguir parar de rir. No carro, voltando para casa, ia pensando uma maneira de esclarecer o mal-entendido, antes que os demais técnicos do órgão, avisados sobre minha excêntrica curiosidade, viessem todos me falar sobre seus hábitos higiênicos e seus cortes de preferência. 

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Talento para pular a cerca

Tudo na vida é uma questão de talento. Talento para a música, para representar, para cozinhar e até talento para "pular a cerca". Algumas pessoas trazem esse talento nato; outras conseguem desenvolver ao longo da vida. Por outro lado, existem aquelas que, coitadas, é melhor nem tentar. No meu caso, não posso reclamar, este é um talento que não me falta. Ei, antes que as mentes maliciosas comecem a fazer mau juízo, vou esclarecer. Estou falando daquela cerca com um monte de pauzinhos enfileirados, ligados por arame, só isso. Quanto a algumas amigas, não posso dizer o mesmo.




Em um belo dia desses, minha querida chefinha, Helen, me pediu carona na saída do trabalho. Helen é uma mulher alta, de um porte "mais ou menos" atlético, mas com uma desenvoltura física equivalente a de um lutador de sumo aposentado. Como o carro estava um pouco longe, sugeri que pulássemos uma pequena cerca para cortar caminho. Isso foi um processo. Levei alguns minutos para convencê-la que era uma ação segura, rápida e que podia, inclusive, ser divertido. Claro, tive que jurar que não havia, na história daquele estacionamento, nenhum registro de acidentes mortais com a bendita cerca. Quase convencida, ela topou.



Primeiro fui eu. Passei por umas "agaves", uma plantinha que parece um ouriço do mar, sem maiores prejuízos, pulei a cerca rapidamente e fiquei do outro lado esperando-a. Entre tantos "uis", "ais" e "ai meu Deus", saiu um longo "eu acho que não vou conseguuuuuiiiiiir!!!!!!" Para socorrê-la, segurei todas as suas tralhas, abaixei a cerca e apoiei sua mão. Com a ajuda, a atleta foi até ágil e não demorou mais do que dez minutos para transpor seu obstáculo. Para incentivar, falei só uma mentirinha: - você foi muito corajosa!



Com um suspiro aliviado e cheio de orgulho, Helen saiu andando ao meu lado. Achei que o assunto estava encerrado, mas enquanto íamos pelo passeio, ela me olhou com uma cara de choro, de dar pena, e disse:



- Aquela planta me furou e tem alguma coisa escorrendo na minha perna. - Já aos prantos, ela continuou:

- Eu acho que é saaaangue!!!!



O que é isso minha gente? Uma mulher com quase um metro e oitenta e mais os quinze centímetros de salto chorando porque se espetou numas plantinhas? Achei um exagero tremendo, mas para não parecer completamente insensível com suas lágrimas, fiz uma fingida cara de preocupada e, pegando em seu ombro, disse:



- Calma, deve ser impressão sua.



Quando entramos no carro, ela levantou a barra da calça e, para a minha surpresa, a perna estava toda desgraçada e o sangue escorria. Que miséria era aquela? Como a criatura conseguiu esta proeza é um mistério que deixaremos para o universo.



Saímos no carro com ela choramingando e reclamando. A minha vontade era de mandá-la engolir o choro e manter a compostura, mas, como uma boa amiga solidária, ia dizendo:



- Calma Helinha, já passou, já passou.



Nada mais que uns três minutos depois que havíamos saído, Helen, completamente transtornada e fora de si, deu um berro e começou a se saculejar toda gritando: - ai! ai! ui!.



Fiquei morrendo de medo. Não fazia idéia de seu elevado grau mediúnico e das inesperadas incorporações de espíritos comunicantes. Em fração de segundos a mulher arrancou a roupa ficando só de sutiã dentro do carro. Para mim, era a visão do inferno, mas uma platéia masculina até apreciaria a dona de sutiã se remexendo como uma dançarina indiana, até que, enfim, ela conseguiu pronunciar algo inteligível:



- Tem um bicho na minha roooooupa!!!!!!!



Era, realmente, o que faltava. Eu já havia pulado a tal cerca algumas dezenas de vezes e nunca tive qualquer surpresa. Com Helen, tudo aconteceu. Ela continuou sacudindo a roupa até que conseguiu pegar o inseto. Nesta hora os dois atracaram-se numa luta bárbara, misto de um espetáculo de gladiadores e um evento de "Vale tudo". O bicho, no alto dos seus dois centímetros e meio, levava uma pequena vantagem, mas Helen, guerreira, não desistia. Preocupada, falei qualquer coisa que desviou a atenção do coitado. Aproveitando-se da situação, numa ação não muito leal, ela desfilou o golpe fatal, vangloriando-se com uma gargalhada mais aterrorizante do que a da madrasta da Branca de Neve, quando enfim conseguiu que a pobre menina comesse a maçã. Agora estava eu em um carro com uma mulher seminua, toda descabelada, e um defunto. Se não bastasse toda a situação, a louca ainda ia me acusando de arriscar sua vida expondo-a em aventuras no mato.



Sem muito escrúpulo, desovamos o cadáver num matagal e fui deixa-lá. Por fim, ficou a moral da história: se tem uma criatura que pode deitar a cabeça no travesseiro e dormir como um anjo é o companheiro de Helen, porque a dona não tem o menor talento para "pular cerca". Já o meu amor...

domingo, 5 de julho de 2009

Memórias de viagens III: em trupe para Gramado

Se o casal de paraíbas viajando sozinhos protagonizam uma lista razoável de mancadas, imagina quando decidem sair em família. Foi o que aconteceu no último feriado de São João.



A turma, bastante eclética, tinha um grupo de crianças com três meninas, Gabi (8 anos), Cacá (6) e Lulu (6); os adolescentes e jovens adultos, com Nathália (14), Bruno (16), Paulinha (20) e Nanda (22); e os adultos, que acho desnecessário identificar as idades, com o casal Lula e Wilma, Luíza, a matriarca do grupo, e o casal de paraíbas. Ele, o paraíba, como sempre, elegeu-se o chefe da excursão, através de processos não muito legítimos. Ela, a paraíba, foi de curtição. O destino: uma semana em Gramado-RS. Mas essa aventura tem muitos capítulos, e para facilitar, vamos fatiá-la.




Capítulo I: Chegando Lá. Opção: "com emoção"



O grupo viajou dividido em dois. Passada a rotineira agonia do embarque, com os atrasos costumeiros e um congestionamento de gente no aeroporto de Salvador como eu nunca tinha visto antes, nos acomodamos no avião, ocupando nossos lugares marcados, a exceção de Paulinha, que conseguiu uma permuta com outro passageiro para ficar junto com Nathália e Bruno.



No vôo, com destino Porto Alegre, era programada uma escala em Sampa. Quando a aeronave pousou, o paraíba logo levantou-se e foi dar umas voltas para esticar o esqueleto. Neste meio tempo, três rapazes, jovens e muito educados, chegaram junto do trio Bruno, Nathália e Pulinha, e disseram, tranqüilamente, que aqueles assentos eram deles. Nossa ala jovem, completamente avoada, não se deu o trabalho sequer de verificar as passagens. Levantaram-se imediatamente e amontoaram-se no corredor, com umas carinhas de "o quê eu faço agora?"A paraíba, com uma calma que não lhe é peculiar, desconfiou do equívoco e foi checar os bilhetes de embarque. Na verdade, as poltronas dos rapazes realmente eram naquela fileira, mas do outro lado do corredor. Apenas um, o que sentou no lugar de Paula, estava totalmente certo. A paraíba explicou para eles a confusão e os dois, sem qualquer objeção, levantaram-se, permanecendo no lugar apenas o que estava correto.



Tudo tinha sido resolvido na mais completa ordem até que o paraíba, vendo tudo de muito longe e sem entender absolutamente nada, chegou intimando os rapazes, inclusive o pobre coitado que permanecia sentado no assento que era seu por direito. Nathália, totalmente sem graça, disse: "mas pai, esse lugar é dele!" A situação já estava um tanto constrangedora quando o garoto que era alvo da fúria do paraíba, mesmo estando todo certo e com uma gentileza incomum largou o golpe fatal, dizendo ao paraíba: "vocês querem ficar com esse lugar?" O paraíba, com um sorriso mais amarelo que suco de cajá, respondeu: "você faria isso?"



Novamente, todos acomodaram-se nos mesmos lugares do início da viagem, mas, provavelmente, aquele "tapa com luva de pelica" ficou latejando silenciosamente no rosto do paraíba pelo resto do trajeto. Quando chegamos em Porto Alegre, o tal rapaz, todo sorridente, com uma atenção no mínimo suspeita, se deu o trabalho de ir até Paulinha, que também o recebeu com um sorriso de orelha a orelha, para perguntar se a viagem tinha sido boa. Tanta gentileza estava, enfim, explicada.



Apesar de doido, o paraíba tem lá suas qualidades e, cheio de providência, tinha reservado o hotel e perdido algumas noites estudando o percurso no interativo "google earth". No aeroporto, ainda se achando o dono da excursão, tratou de pesquisar o táxi e acertar tudo, e, vamos combinar, considerando que seus serviços saem por custo zero, os mesmos são até satisfatórios.



Antes de sairmos em dois carros, os motoristas conversaram algo só entre eles. Quando os táxis pararam em frente ao hotel, o paraíba perguntou quanto era a corrida e começou a travar com o motora uma pequena discussão sobre o valor. Enquanto o embate inflamava-se, Wilma sentou na porta do hotel com uma fisionomia desolada e quase era possível ler num balãozinho sobre sua cabeça: "de novo não...". Lula assistia a tudo achando um pouco exagerado e Paulinha dizia: "ai meu tio".



De modo geral, ninguém estava entendendo muito a questão. A paraíba perguntou discretamente a Lula quanto tinha sido a corrida no carro deles e, para sua surpresa, Lula respondeu: "o taxista não disse o valor, falou apenas que era o mesmo de vocês". Então, caiu a ficha: o paraíba tinha toda a razão. Os dois motoristas combinaram para arbitrar um valor conforme o nível estimado de patetice dos turistas e, pelo jeito, fomos considerados de alto nível.



Antes de entrarmos no carro, o motorista havia informado que o valor não passaria de "x".Quando chegamos no hotel, o taxímetro informava um valor 25% menor que "x", e o motora teve a cara de pau de cobrar 30% a mais que "x", ou seja, quase o dobro do registrado pelo taxímetro. Deixando os tais "xis" para lá, em português claro, estávamos sendo roubados. Assim, a paraíba e Lula também entraram na discussão em incondicional apoio ao paraíba. Aos poucos, os gaúchos perceberam que não seria tão fácil e recuaram, cobrando o valor correto.



Ficamos nos instalando no hotel enquanto, em Salvador, o restante da turma embarcava rumo a Porto Alegre, com Luíza, Nanda, Lulu e Cacá. Para as pequenas, o avião era uma grande novidade. Logo que a aeronave decolou, Cacá informou que precisava urinar e Lulu apressou-se em anunciar: "ih, o motorista vai ter que parar o avião para Cacá fazer xixi."



No desembarque, longe de casa mais de 3.000km, um rosto familiar era como um oásis, e Luíza logo acenou de longe, quando veio a pergunta:
_Vó, para quem a Sra. está dando tchau? - perguntou Nanda.
_ Não é o seu pai ali? - respondeu Luíza.



Não era, mas deixa para lá.




Capítulo II: Turismo em Porto Alegre



É claro que os paraíbas ainda não tinham reservado, alugado ou programado nada em relação a carro ou qualquer outro transporte para o deslocamento de Porto Alegre para Gramado, e, diante da dificuldade em conseguir qualquer coisa no domingo, a subida para a serra teve que ser adiada para o dia seguinte. Tudo bem, vamos explorar a capital gaúcha.



Saíram todos muito arrumados, entre lã, couro e materiais com efeito térmico, com pelo menos quatro camadas de roupa, cada um, prevendo uma nevasca de surpreender o Alaska. Lula, um incansável atleta de maratonas, lamentou ter que ficar de pernas para cima no hotel o dia todo, mas submeteu-se a tal sacrifício para acompanhar Nanda, sua filha, que não se sentia muito bem.



Mapa na mão, lá se foi o restante do grupo em direção ao centro da cidade. Na caminhada até o metrô, o paraíba, com um senso de direção apurado e uma rara habilidade em leitura de mapas, tomou a frente e, mesmo sob o protesto da paraíba, elegeu o caminho. Não demorou para perceberem a furada que haviam entrado. O passeio para pedestres logo acabou. Dividindo a rua com os carros, atravessaram túnel e entraram numa via expressa. Diante do perigo da empreitada, resolveram enfrentar o matagal, resquício da Mata Atlântica, que margeava a pista. Mas o que era uma mata selvagem, a lama nos sapatos e alguns carrapichos na roupa diante da vontade louca de curtir o passeio. Vendo tanta animação, o sol não quis ficar de fora, e nos presenteou com um calor inesperado. Com o suor escorrendo, aos poucos, como cebolas perdendo as camadas, fomos arrancando as roupas. Andamos, andamos, e nada. Não avistávamos qualquer sinal de estação de metrô, de passeio para pedestre ou mesmo de gente, a não ser as que passavam por nós a oitenta quilômetros por hora, dentro dos carros. Por mais estranho que possa parecer a cena, aquilo estava hilário, e continuamos até que Luíza, tomando a frente, declarou: "eu vou voltar!" Na mesma hora, todos a seguiram, mesmo sob o protesto do paraíba, que insistia em dizer que a estação estava logo ali na frente.


Enfim na estação, chegou o metrô que nos levaria até a parada do Mercado. No rítmo baiano, começamos a ingressar no vagão um a um, até que a porta se fechou, para nossa surpresa, deixando Nathália de fora. O paraíba não contou conversa, desceu na estação seguinte para ir resgatar a filha, enquanto a outra filha, Gabi, em prantos, chamava pela irmã, achando que nunca mais a encontraríamos. O restante seguiu até a estação do mercado, para aguardar lá. Se não fosse pela preocupação e tristeza de Gabi, a situação inusitada, novamente, inspirava o riso. Apesar de tudo, como bons brasileiros, tínhamos esperança de conseguirmos passear na cidade ainda naquele dia.



Reunidos novamente, andamos pelo centro, fomos à Praça da Alfândega, onde entramos no Museu de Artes do Rio Grande do Sul; visitamos a praça da Matriz, passamos pelo Theatro São Pedro, o Palácio Piratini, sede do Governo, a Assembléia Legislativa, e conhecemos a Catedral Metropolitana, com uma enorme cúpula; depois, almoçamos no Galpão Crioulo. Uma parte do grupo debandou e foi conhecer também o Estádio Beira Rio e o mirante da TV. Por fim, depois de muito andar e de 327 registros fotográficos de Bruno e suas performances, terminamos o dia na Usina Gasômetro, antiga termoelétrica da cidade, à beira do rio Guaíba.



Por hora, já estava de bom tamanho.






Capítulo III: A Odisséia de Subir a Serra




A segunda-feira prometia ser gloriosa. Acordamos empenhados em alugar os carros, arrumar tudo e se mandar. Luíza, cheia de aitude, não esperou ninguém. Ligou para algumas empresas, escolheu a sua e alugou um Palio preto, que rapidamente foi levado até o hotel. Lula e o paraíba decidiram-se por outra locadora e tiveram que atravessar a cidade de ônibus para ir buscar o carro. Enquanto isso, ficamos todos os demais aguardando no hotel.





Considerando o horário limite para o check-out, fechamos a conta e ficamos com a bagagem aguardando em um pequeno estar ao lado do hall do hotel. Gabi, Cacá e Lulu, que de santas não tem nada, estavam soltas, dando nó em pingo de éter. As três mexeram no computador destinado a utilização dos hóspedes e conseguiram desconfigurar absolutamente tudo. Como se não bastasse, Gabi achou no banheiro um frasco de lavanda com burrifador, para ser utilizado moderadamente dentro do próprio banheiro. Ela se encantou com o brinquedinho e borrifou lavanda em todo o hotel. Devo adimitir que ficou tudo muito cheiroso, mas a dona do hotel, que circulava por lá, pirou e saiu despejando desaforo em todos que estavam por perto. Pronto, nosso filme já estava queimado naquele hotel.


TEXTO EM ELABORAÇÃO


Depois de mais de três horas de espera, chegaram os dois. Lula com um Fiat Uno vermelho, e o paraíba com um branco. O grupo se dividiu em três carros. A turma jovem não abriu mão de ir com Luíza. As pequenas foram com Lula e os paraíbas saíram sós. Tudo arrumado, fomos em direção a Gramado. No caminho, os paraíbas na dúvida entre qual rumo seguir, estacionaram o carro atrás de uma viatura de polícia em Novo Hamburgo e desceram para perguntar. A recepção foi ótima e a conversa começou a ficar animada, com gesticulações exageradas e tal. Os outros dois carros só se aproximaram depois
Bateu o carro


Quando chegaram à Gramado, todos os contra-tempos foram compensados. A cidade é linda, realmente mais do que o esperado. Os três carros em comboio percorreram a cidade apreciando o estilo das edificações, a harmonia do urbanismo, a iluminação. Luiza, no carro com o grupo jovem, se encantava com todos os detalhes:


- Olha, que linda aquela casa! Oh, que graça aquele restaurante. Gente, que beleza é o paisagismo. Vejam as ruas, tudo tão limpo, iluminado.


Enquanto observava tudo, se afastava do centro seguindo o carro do Paraiba. Este, por sua vez, foi preciso. Com o google earth decorado, deu uma volta de apresentação na cidade e seguiu para o endereço da pousada.

Aguarde o restante do capítulo ...



terça-feira, 30 de junho de 2009

Mensagem Póstuma

Ele entrou na minha vida quase que por uma imposição. Nossos caminhos provavelmente espreitaram-se em muitas oportunidades, mas aguardaram o momento certo, mágico, para enfim, cruzarem-se.




Cheia de expectativas, iniciava uma nova página na minha vida profissional, em uma nova empresa, quando fomos apresentados. Confesso, não ouvi badalar de sinos, não senti calafrios e, posso supor, meus olhos não brilharam. Sua aparência não me atraiu e seu modo seco, impecavelmente profissional, que deu o tom de nossos primeiros contatos, não davam qualquer prenúncio da cumplicidade e afeto que alcançaríamos.



Aos poucos, como que tateando na penumbra, fomos relaxando. Eu, mais tímida e insegura no ambiente, limitava-me a assuntos de reuniões, troca de materiais técnicos e informações corriqueiras da empresa. Ele, querendo aproximação, arriscava temas sócio-políticos e piadas bizarras.



Assim, fomos nos chegando. Às vezes, com curiosidades e imagens de lugares longínquos e deslumbrantes ele me conduzia em viagens maravilhosas. Tinha também seus pontos fracos - todo mundo tem. Conseguia me tirar do sério com a insistência em me envolver em pirâmides e correntes e, pior, com a fixação em me evangelizar nos mais variados credos. Ainda assim, sua característica mais marcante era o humor. Amo quem me faz rir, quem com graça leva a vida e transforma infortúnios em momentos divertidos. Ele era assim, comigo e com todos. Extraía com perspicácia a comédia de nossa política, condição social e sexualidade.



Ah, por falar em sexualidade, nessa área nunca houve nenhum igual. Parecia não ter medo, não ter limites. Explorava, revelava, com sutileza e sensualidade, escorregando, por vezes, também na vulgaridade. Múltiplo, contraditório, diverso, polêmico. Esse era ele, assim éramos nós. Me perdi descobrindo todos os seus mecanismos e possibilidades.



Contudo, sua saúde era precária, sua estrutura genética desprivilegiada e seu sistema imunológico traiçoeiro. Como um ímã amaldiçoado atraía para si todos os vírus transeuntes. Já andava lento, disperso e, com freqüência, não estava acessível. Então, veio o golpe fatal. A liberdade de sua voz e seus pensamentos incomodou. A censura instalou o silêncio orquestrado pelo temor. Ele não resistiu.



Hoje, minha voz presa despede-se. Nossos amigos, em uníssono, choraram a limitação de nosso contato e agora choram a ruptura definitiva, com a imposição de sua substituição que culminou em sua morte sofrida. Descanse, sereno e convicto de que enquanto esteve entre nós foi um elo de integração e alegria.



Adeus, querido Lotus Notes, valoroso sistema amigo de intra e internet, nosso mensageiro remoto corporativo.

terça-feira, 2 de junho de 2009

A Revolução depois da Pílula


Outro dia estava em um setor da empresa que trabalho, onde também estavam mais nove colegas, todos arquitetos ou engenheiros. Analisava, concentradíssima, um projeto junto com um amigo, quando, de repente, ouvimos de uma colega:

"_Que bom seria se a gente, quando estivesse com muita vontade de fazer xixi e não pudesse se aliviar, tivesse a opção de entregar nossa "perseguida" para alguém fazer o favor de levar no banheiro."

Acho desnecessário dizer que nossa interlocutora é completamente tresloucada e autora de pérolas divertidíssimas, e que, por isso, ninguém se espantou. Contudo, a declaração teve um impacto instantâneo no ambiente. Imediatamente, os abnegados colegas da ala masculina prontificaram-se a ajudar conduzindo a "senhorita" ao toalete, mas não obtiveram sucesso. Diante da elucubração filosófica, não houve quem não quisesse participar e colaborar na tese inédita no meio acadêmico.

Para começar, vamos esclarecer: não se trata, propriamente, de uma mutilação. A ação seria mais elaborada e nada dolorida. Poderia ser, por exemplo, um simples processo mecânico de "desatarraxamento", algo como rosqueamento ou fixação por pressão. A princípio, imaginar aquilo me pareceu terrível, mas o pensamento é livre, o debate estava divertido e todos sentiam-se a vontade para opinar.

É claro que sempre tem gente para querer se aproveitar e o instrumento poderia ser usado para propósitos menos práticos e muito menos nobres. Por exemplo, aquela classe dos maridos descontroladamente ciumentos obrigaria violentamente suas mulheres a deixarem suas perseguidas sob a permanente guarda do cônjuge. Por outro lado, a mulher, vitimada e cansada de tanta opressão, poderia alugar uma perseguida alheia para deixar sob os cuidados do marido e fazer livre uso da sua, enquanto o parceiro imagina controlar a situação.
Já as mulheres, solidárias como são, usarão o recurso para colaborar umas com as outras. Uma amiga bem descolada poderia levar a perseguida de outra amiga, encalhada e entediada, para dar umas voltas e quebrar a rotina. Ou talvez uma senhora, casada, em dificuldades para explicar onde deixou a "sua menina", poderia contar com a ajuda de uma amiga de fé, que juraria de pé junto que a senhora deixou a mesma com ela para ser depilada.

O que não ficou muito claro e suscita uma cuidadosa pesquisa científica é de quem seriam as sensações proporcionadas pela "dita cuja". Seria da proprietária ou da portadora? Complicado. Se for sempre da proprietária, não importando onde a perseguida se encontre, poderia ser prático em alguns aspectos, mas, ocasionalmente, poderia também promover algumas "saias justas".

Vejamos: você está numa reunião formal de trabalho. Com o modelito impecável e uma retórica eloquente, causando a "maior boa impressão". Empolgada, você começa a utilizar toda aquela sua lista de palavras que ninguém sabe o que significa, mas que causam o grande impacto, quando, repentinamente, enquanto sua perseguida é utilizada indevidamente em algum canto da cidade, seus olhos começam a revirar. Muita calma nessa hora. Pode se desculpar alegando ter um alto grau de mediunidade e estar recebendo um "espírito de porco". Seja como for, o melhor é pedir licença e tratar de resgatar o que lhe pertence.

Por outro lado, se a sensação é da portadora, o que seria até muito justo pelo ônus de ter que carregar e cuidar, dificilmente atingiríamos aquela relação de parceria e cumplicidade que geralmente nutrimos com nossa "amiga íntima".

Como podemos ver, o assunto é realmente polêmico. Longe de querer encerrar o debate, escrevo aqui apenas algumas observações pessoais, mas frisando que é uma tese aberta, em fase de desenvolvimento. De qualquer maneira, deixo claro que, quando chegar na fase dos experimentos com cobaia humana, a vaga não me interessa.

sábado, 16 de maio de 2009

Memórias de viagens II: os paraíbas entre "los hermanos"



Sim, os paraíbas desta vez foram mais ousados. Passaporte na mão, atravessaram a fronteira, enfrentaram o desafio do idioma e foram dar uma banda nos parceiros do Mercosul: Argentina e Chile. Ele se achando o chefe da excursão, ela se achando a intérprete do grupo.

Saída de Salvador com um pit stop no Rio de Janeiro, rumo à Buenos Aires. Era para ser uma breve parada na Cidade Maravilhosa, tipo desce, apresenta a documentação, despacha alguma coisa e vai embora, mas eles conseguiram o improvável: perderam o avião. Ele diz que foi ela. Ela diz que foi ele. Não interessa, ficaram os dois. Tudo bem, quatro horas depois eles embarcaram.
Como bons paraíbas do Norte e Nordeste, o frio era um desafio. No Brasil conseguiram descolar uns casacos emprestados. Ela, se deu bem, chegou desfilando um esportivo Paco Rabanne de couro marrom. Ele, desceu do avião parecendo um esquimó crescido além da conta. Era um bonito casaco, mas talvez fosse mais adequado para "A Era do Gelo I", quando o gelo ainda não tinha começado a derreter. Vamos trocar dinheiro.

No primeiro câmbio encontrado: - quanto é? - A moça é simpática, mas fala um pouco enrolado. Pero que sí, pero que no!!?! Saíram com os pesos na mão. Quanto foi mesmo? O quê? Fomos roubados! Vamos logo para Bariloche!
Que graça é Bariloche, a porta de entrada da Patagônia argentina. A cadeia de montanhas cobertas de neve, o centro cívico, a catedral, o lago Nahuel Huape, as tonalidades do céu ao entardecer. Mal podiam esperar para esquiar! O quê? Não tem neve? Esqui só daqui a dois meses? Mas como ninguém falou nada? Tudo bem, eram inúmeras opções de passeios mais ou menos radicais nas proximidades da cidade. Foram conhecer as cavernas "Los Leones", há 30km de Bariloche, com direito, segundo as propagandas, a vistas maravilhosas, pinturas rupestres, trechos de difícil acesso, lago no interior da gruta e breu total. Vistas maravilhosas sim, mas a caverna era curtinha, o lago pequenininho, o breu era olhando só para um dos lados da caverna e a pintura rupestre, tinha que usar muito a imaginação. Quanto ao trecho de difícil acesso, se você tem mais de 95 anos, é melhor não ir. De modo geral valeu, mas para quem anda pela Chapada Diamantina, o passeio parece um pouco aquém das expectativas.

Depois de andar o dia todo, o chuveiro quentinho do hotel era uma tentação. Também tinha uma água bem quentinha no bidê, diria atéuma "água escaldante", e ele descobriu isso da pior maneira possível.

A montanha "Tronador", aparentemente a mais alta da região, ainda tinha neve. Então, vamos conhecer. Passeio contratado, saíram com máquina fotográfica em punho, sonhando com a guerra de bola de neve. Os argentinos sabem mesmo valorizar suas atrações turísticas. Um galho atravessado na estrada transforma-se em um "fragmento vegetal centenário testemunho de civilizações pré-colombianas digno de parada para registros fotográficos". Os paraíbas embarcaram nessa. Fotografa isso, fotografa aquilo, e a bateria da câmera acabou antes da metade do passeio. Não tem problema, o importante era viver o momento. Várias paradas depois chegaram ao pé da montanha, realmente linda, mas, como é? Não pode subir? Não pode por quê? Adiada a batalha de neve.

E o idioma, uma delícia. Entende-se tudo. Pararam para fazer algumas ligações internacionais, comprar jornal e etc. Depois de muito blá, blá, blá no telefone, o senhor que os atendia entregou a conta comentando:

- ¿Muchas novias, heim?
Tradução: "Muitas namoradas, heim?"
Ele não ouviu, não entendeu e deixou para lá. Ela, muito entendida de espanhol, largou a pedrada: - Si, muchas novidades.
O senhor continuou: - ¿Es muy celosa?
Tradução: És muito ciumenta?
Ela, sem entender muito bem o porquê da pergunta e completamente desnorteada, responde: - Si, muy celosa.
Tradução do que ela entendeu e pensava estar falando: “Sim, muito cheirosa”. Por hoje está bom, pega o jornal e adios!
Não dá para visitar a região sem pensar em saborear os vinhos, mesmo para os que não são exímios apreciadores, como os paraíbas. Acompanhado de parrilla, fondue ou truta, sempre ia bem. Mas foi num pequeno barzinho underground, intitulado Che (do Guevara, só para esclarecer), ainda em Bariloche, em parceria com uma pizza bem mais ou menos, que rolou o momento mais descontraído e prazeroso do vinho, talvez o mais agradável momento a dois da viagem.

Sem rumo certo, foram parar em San Martin. Pura sorte. Trata-se de uma pequena cidade linda encravada num vale no fim dos "Sete Lagos", com gabarito de no máximo três pavimentos e arquitetura dos Alpes. Optaram por uma exploração by bike. O "tur" rendeu bons momentos, lindas vistas, lindas fotos e, para ele, dores na região dos "países baixos". De San Martin, agora, para o Chile. Destino: Pucon. Foi de lá que saíram para a expedição no vulcão Vila Rica.
Neste dia tudo estava perfeito. Os paraíbas estavam se falando, o céu estava claro, sem previsão de chuva ou neve, e o frio não chegava a ser assustador. A subida não é só para profissionais, mais está longe de ser uma empreitada fácil, basta dizer que muita gente não se atreve a ir e outros tantos ficam pelo caminho. A cidade fica 800 metros acima do nível do mar, subiram mais 600 metros de carro, 400 metros de teleférico e 847 longos metros andando até o cume, de onde puderam ver a cratera do vulcão, com 600 metros de profundidade. No grupo haviam dois chilenos (os guias), uma australiana, um inglês, dois franceses, uma colombiana, um tcheco e os dois paraíbas, os autênticos representantes do Brasil. Também haviam pelo menos mais uns três pequenos grupos explorando o vulcão naquele mesmo dia. Entre português, espanhol, inglês, portunhol e outros dialetos improvisados, entenderam-se todos. Durante a caminhada, aos poucos, as pessoas iam se distanciando, ficando algumas para trás, voltando a se reunir novamente a cada parada. Cada trecho vencido era uma vitória da vontade de estar lá, de chegar, de vivenciar tudo aquilo. De cima, sacudidos intensamente pelo vento, entre a fumaça e um forte odor de enxofre, víamos a cratera, e ao redor do monte, um imenso deserto de nuvens. Foi, sem dúvida, um desafio recompensador e o momento mais emocionante da viagem.
No Chile, ainda foram conhecer Santiago, depois voltaram para a Argentina, passaram por Mendonza e finalizaram a viagem em Buenos Aires, apreciando um elaborado espetáculo de tango. Tirando o que não prestou, foi tudo ótimo. De qualquer maneira, viajar é mesmo sempre bom. Só para registrar: na volta, chegaram no horário e não perderam o vôo.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Por que não eu?




Era só mais um dia corrido de semana. Nossa heroína almoçou apressadamente e saiu para pegar o ônibus de volta para o trabalho. Naquele dia, por ironia do destino, ela havia saído com um discretíssimo modelito "vestida para matar". Toda de preto, com calça comprida e uma camisa de fino cetim de seda, mangas três-quartos e um laçarote no pescoço que chegava a esconder o queixo, contrariando um pouco as leis naturais do verão baiano. Antes de continuarmos nossa aventura, faremos uma breve pausa para uma nota. A fim de proteger a identidade da intrépida protagonista, adotaremos para ela o singelo pseudônimo de "Nice Maria".

Logo chegou o ônibus e ela entrou naquele veículo sem imaginar que embarcava numa viagem incerta, mistura de "Velocidade Máxima" e "Expresso do Oriente". Sentou próximo da frente e ficou apreciando a paisagem. Não demorou e entraram dois ladrões, que doravante chamaremos por meliante nº1 e meliante nº2, para não criar afinidade.

Armados até os dentes com duas facas de cozinha cegas e enferrujadíssimas, de aproximadamente 10cm cada uma, o meliante nº1 foi para frente, enquanto o outro procurava uma vítima na parte de trás da condução. De repente, Nice Maria é surpreendida, a passageira na sua frente é duramente ameaçada.

Meliante nº1: - Minha senhora, fique calma, mas isto é um assalto. Por gentileza, a Sra. poderia me entregar todos os seus pertences ou terei que ser indelicado.

Nice Maria arregalou os olhos. Aquilo estava realmente acontecendo com ela. Finalmente ela faria parte daqueles números estatísticos sobre a violência urbana. O evento, se bem conduzido, renderia histórias para rodas de amigas e ganharia um destaque especial no seu livro de memórias. Ela esticou-se na cadeira, arrumou os cabelos e esperou ser notada. Mas não foi o que aconteceu. O meliante nº1 continuava empenhado em convencer a passageira abordada a entregar qualquer coisa que fosse. Nice Maria já estava perdendo a paciência com a mulher, pensando com seus botões: "ô minha filha, libera o rapaz aí que eu estou na fila". Diante do impasse, ela falou:

- Ô moço...

Antes que ela concluísse, o meliante nº1 respondeu:

- Por favor senhorita, eu estou no meio de uma discussão, tenha um pouco de paciência!

Paciência? Aguardo uma chance como esta há 34 anos e ele me pede paciência, pensou ela. Numa atitude intempestiva, ela jogou a bolsa no chão, tentando fazer com que parecesse um acidente. O marginal não tomou conhecimento. Ela, indignada, levantou-se e foi tentar a sorte com o outro assaltante.

O meliante nº2 teve mais sucesso que o nº1. Abordou um fortão sentado no fundo do ônibus:

- Por obséquio, o Sr. poderia me passar a sua carteira?

O rapaz hesitou, mas diante da violência da intimação, não resistiu e entregou. O assaltante então foi em direção à outra moça. Nesta hora chegou Nice Maria, se posicionou próximo ao mesmo e esperou um contato. Joga cabelo pra lá, joga cabelo pra cá, e nada. Desesperada, pensava: "eu, linda, loura, com estonteantes olhos azuis, estou invisível por acaso?"

A essa altura do campeonato a classe estava indo embora e a Xêpa já queria baixar. Parecia que só um barraco bem armado resolveria a questão. Mas acabou tendo uma idéia melhor. Exímia dançarina de pagode, tecnobrega e axé, com especialização em "É o Tchan", foi para o centro do corredor e começou um solo que mataria de inveja Carla Perez. Os meliantes se olharam com cumplicidade e apressadamente bateram em retirada. Enquanto os dois saíam, Nice Maria, muito nervosa, esbravejava em alta voz:

- Eu sou funcionária pública concursada, servidora do Estado, eu tenho dinheiro porque não é nem meio do mês ainda. Qual é o problema de vocês, heim?

Os outros passageiros tentavam, inutilmente, acalmá-la.

À noite, no recesso do lar, gozando o descanso merecido, os meliantes nº1 e nº2 conversavam:

- É companheiro, nossa atividade laborativa não está fácil, a cada dia fica mais perigoso esse ofício.

- Então irmão, você viu aquela louca de hoje? Um transporte público que se considere "de qualidade" deveria exigir atestado de sanidade mental dos usuários. A mulher frustrou nossa ação, pôs em risco a nossa integridade física e a de todos os passageiros.

- É, ando pensando em investir em outra carreira. Na política, talvez, para não fugir muito desse ramo.