Cristo redentor,
Braços abertos sobre a Guanabara...
Dentro do avião, sobrevoando o Rio de Janeiro, é inevitável cantarolar
mentalmente a canção de Tom Jobin e Vinícius, sabiamente chamada de "Samba
do Avião". Não sou carioca, nunca morei lá e minha ascendência não tem nem
um pezinho no Rio, mas sou brasileira e não obstante o distanciamento
genealógico e geográfico, a metrópole muito me emociona. Já havia passeado pela
cidade outras quatro vezes, mas desde a última visita, lá se vão dezenove anos,
e esta ida tinha algumas peculiaridades muito especiais. Levei meu pequeno,
Cauê, com seis anos, e a viagem, com a desculpa de comemorar o aniversário de
Karina, uma de minhas queridas cunhadinhas, reuniu toda a família mais próxima:
papai, mamãe, meus três irmãos - Ricardo, Renato e Eduardo, minhas cunhadas -
Lígia e a aniversariante, e minhas cinco sobrinhas - Taíssa (16 anos), Amanda
(quase 15), Camila (11), Luiza (11) e Duda (4).
A programação era alugar três carros no aeroporto e ir direto para Búzios, onde
ficaríamos quatro dias. E assim foi. Saímos no começo da tarde guiados por
Ricardo, que além de ser naturalmente muito bem orientado, carregava com ele
nosso único GPS. Esses aparelhinhos são ótimos, mas um tanto sistemáticos. Se
não for tudo exatamente como eles querem a conversa desanda. Enquanto os
satélites chegavam a alguma conclusão sobre a direção a tomar, Ricardo
consultou um GPS alternativo na estrada. A morena, do alto de seu um metro e
oitenta, indicou o rumo certo e tudo voltou ao eixo. Na rota da região dos
lagos chegamos à Búzios sem maiores contratempos. Já havia passado um carnaval
no balneário e ao retornar tive novamente a mesma impressão: ô lugarzinho
abençoado!
Nos acomodamos na pousada ainda encantados com a paisagem, a cidade, as
edificações, tudo um charme. Cauê estava excitado com a movimentação da
hospedagem e queria ver tudo ao mesmo tempo, a cem kilômetros por hora, sua
velocidade habitual. Ainda com a memória de um ano atrás, quando hospedou-se
numa pousada na praia de Jururê, próximo à Florianópolis, num quarto coladinho ao
do tio Ricardo, saiu de nossos aposentos gritando tio Ricardo, tio Ricardo, e
já foi abrindo a porta e entrando no apartamento junto ao nosso, sem me dar
tempo de avisar que não era lá. No mesmo pé que entrou, saiu, mudo e branco
como uma vela. Pegou o vizinho gringo de cueca.
Antes de sairmos para o jantar, que ainda era o almoço, recebemos a visita de
Willian, Paula e Felipe, amigos de Eduardo e Lígia, com quem aproveitamos o
drink de boas vindas oferecido pela pousada apreciando a vista dos barquinhos
coloridos ancorados na praia da Armação. O festivo barman, muito conversador e
enturmado, contou vários casos e comentou comigo:
- As crianças são animadas, mas aquele ruivinho é “parada dura”.
Resignada, respondi: - O ruivinho é meu.
O primeiro passeio foi pela Orla Bardot, que percorre toda a praia da Armação.
O nome é uma homenagem à atriz francesa Brigitte Bardot, que esteve em Búzios
na década de sessenta. E passeando pela orla, quem encontramos? A própria:
Brigitte. É verdade, ela estava um pouco indiferente, dura, fria. Nem ligamos,
enquanto ela ficava lá, toda estátua apreciando a vista, nos aproveitamos de
sua presença e tiramos muitas fotos. Mas com Duda a conversa foi diferente.
Rolou empatia instantânea e a pequena pegou no maior papo com aquele duro
metal. Contou sobre nossa viagem, perguntou sobre ela e a convidou para ir
conosco. Diante do absoluto silêncio de sua interlocutora a baixinha foi
embora, mas não esqueceu. De vez em quando perguntava pela Brigitte, se
preocupava com ela sozinha na chuva e em todos os passeios lembrava: - e se a
gente convidar a Brigitte?
No dia seguinte, aproveitando o movimento do fim de semana fomos para a praia
de Geribá e o anunciado passeio de barco ficou para a segunda-feira. Como
combinado, na segunda nos mandamos para o píer e ficamos esperando Renato, que
foi comprar o recarregador da bateria da máquina fotográfica. O recarregador
ele não conseguiu, mas conseguiu deixar a gente esperando bastante. Por fim,
considerando o tempo que estava nublado e um pouco instável, o comandante do
barco sugeriu que deixássemos o passeio para o dia seguinte. Sem problemas.
Se na segunda o tempo não era promissor para um lindo passeio de barco pelas
ilhas e praias de Búzios, na terça-feira era, no mínimo, desaconselhável. O dia
amanheceu frio, chovendo e ventando. Mas não saímos dos quatro cantos do país
para chegar lá e nos assustarmos com qualquer chuvinha. Comandante, queremos
ir! Renato, para não fugir a regra, nos deu uma canseira novamente esperando
ele que, desta vez, foi numa farmácia. A mais distante que ele achou.
Contrariando todos os prognósticos, o passeio, que tinha tudo para ser um
desastre, foi maravilhoso. No barco era só a família e cantamos, dançamos, almoçamos
e brindamos o aniversário de Karina, com ou sem chuva. Mauro, o comandante,
carioca da gema, ia nos falando sobre o balneário. A aldeia de Armação de
Búzios remonta aos mil e setecentos, quando era uma colônia de pesca de Baleias
através de um mecanismo que eles chamam de armação, daí o nome do local. Apesar
de hoje soar como um absurdo ecológico a pesca de baleias, era um processo
artesanal de pouco impacto, que foi instinto ainda no século XVIII, quando
chegaram à costa do Rio de Janeiro os navios baleeiros norte-americanos que,
estes sim, quase extinguiram a espécie no período. Praias dos Ossos, Azeda,
João Fernandes, das Virgens, da Tartaruga, ilha Feia, entre outros, percorremos
o litoral recortado da península, repletos de enseadas protegidas pelo relevo,
parando em vários lugares. A exceção de Renato e Karina, todos, não obstante o
frio e a água geladíssima, caíram no mar. Papai e mamãe, fazendo bonito,
chegaram a nadar até a ilha Feia, que nem é tão feia assim. Durante boa parte
do passeio o comando do timão foi de Cauê, que se saiu muito bem. Além disso,
nos atualizava constantemente sobre a existência e a profundidade dos peixes
próximos, que ele checava a cada minuto pelo radar. Num momento coruja, fiquei
observando minhas sobrinhas, já tão grandes e lindas, cada uma a seu jeito.
Taíssa é a contestadora, Amanda a general. Camila tem um charme todo maroto e
Luiza é pura meiguice. Sobre Duda, poderia dizer que ela é loura, e isso
bastaria para ela, mas na verdade é muito mais.
Na quarta-feira estava programada a volta ao Rio, para assistir à noite o
Fluminense jogar contra o Vitória no Maracanã, pela sexta rodada do Brasileirão
de 2010. Apesar da correria de três carros em comboio pelas vias expressas do
Rio, foi tudo bem até a parada para o almoço, num restaurante no Aterro do
Flamengo. O Renato, claro, nos deixou esperando novamente, desta vez uma hora,
enquanto ele foi comprar o bendito recarregador da bateria. Quando saímos, já
com o estado de nervos alterados, faltou combustível em um dos carros,
especificamente o que eu guiava, e mal deu tempo de chegar para o acostamento.
Resolvida esta etapa, fomos em direção ao hotel, com o horário começando a
apertar para o jogo. Mas esse, definitivamente, não era o meu dia de sorte. Em
uma das sinaleiras fiquei para trás. Aí começou: telefona para um, liga para
outro, ninguém atende, os celulares descarregando, o único com carga perdido
dentro do carro tocando insistentemente sem ser localizado, todos falando ao
mesmo tempo, ninguém se entendendo e a tolerância atingindo o nível zero,
completamente perdidos pela cidade. Quando nos encontramos novamente já
estávamos perto do hotel. Mamãe que, toda desligada, já havia entrado em um
quarto alheio na pousada de Búzios, novamente no hotel do Rio, procurando o
banheiro do seu quarto, entrou no quarto do vizinho, que era conjugado e estava
com a porta destrancada. Sorriso amarelo e muitas desculpas resolveram o
imprevisto. Enquanto isso, no quarto que eu dividia com Cauê e Renato,
estávamos encantados com a vista de frente para a baía da Guanabara. Cauê
"futucando" todas as novidades que encontrava, me perguntou sobre uma
caixinha que, a princípio, olhando por alto, também não identifiquei o que era.
Daqui a pouco ele chegou com o mistério esclarecido:
- Olha mãe, é para proteger a lanterna, para não molhar.
Peguei a embalagem para ver. Era um preservativo com instruções de uso
ilustradas na caixa. Sobre a linda vista, depois descobrimos que o quarto de
frente para a baía tinha sido especialmente reservado por Ricardo para papai e
mamãe, e, por equívoco, nos mandaram para lá. Melhor relaxar e aproveitar.
Saímos para o Maracanã uma hora antes do jogo e aprendemos uma dura lição:
nunca subestime um engarrafamento numa grande cidade. O trânsito não estava
parado, mas estava quase. No carro que fui ficou logo clara a divisão dos
grupos. Papai e Eduardo eram os pessimistas, mamãe e Taíssa eram as neutras e,
no fundo do carro, Lígia, Duda e eu, éramos as otimistas, animadíssimas. Os
pessimistas iam praguejando: “já perdemos o primeiro tempo”, “vamos perder o
jogo”, “os carros não andam”, “vai chover”, “é capaz de alagar as ruas”. As
neutras iam rindo dos dois grupos. As otimistas iam cantando: “O Maraca é
nosso! Há, há, hu, hu! O Maraca é nosso! Há, há, hu, hu!” Depois do gol do Fred
no primeiro tempo, que ficamos sabendo pelo rádio, adaptamos a música. “O Fred
é nosso! Há, há, hu, hu! O Fred é nosso! Há, há, hu, hu!” E não tinha nada mais
engraçado que ver Duda, aquele projeto de gente falando toda animada: “- Amiiiiga,
o Fred é lindo!!!!” Para matar de raiva seu pai, um flamenguista doente.
Chegamos ao Maracanã no intervalo do jogo, com o placar 1x0 para o Flu.
Encontramos com o resto da turma e Willian, o amigo do Eduardo, e fomos
correndo para a arquibancada. Na entrada, uma bela surpresa. Tocava no som do
estádio o hino do Fluminense. Foi de arrepiar. Papai, Amanda, Camila, Luiza,
Ricardo, Renato e eu subimos a rampa que dava acesso à arquibancada cantando a
plenos pulmões. Só para registrar, os únicos que desandaram e não são
fluminenses na família são os flamenguistas Eduardo, Ligia e Taíssa. Duda ainda
está confusa.
Ao entrarmos na arena, que visão! O Maracanã é realmente tudo que sempre ouvi
falar. Um templo apoteótico do esporte que mexe com as nossas emoções. Recomeça
o jogo. Tudo que ficamos sabendo do primeiro tempo não se repetiu no segundo. O
Flu, que havia começado o jogo com boa movimentação, toque de bola e ameaçador,
voltou do intervalo com o pé no freio e não assustava ninguém. O resultado foi
o crescimento do Vitória, que aos 39 minutos carimbou o gol: 1x1. Mas nosso
otimismo não foi em vão e o sofrimento durou muito pouco. Três minutos depois,
Alan não desperdiçou sua chance e marcou: 2x1 para o Flu, placar final. E enfim
pudemos conferir o estádio sacudindo as bandeiras tricolores ao maravilhoso som
de gooooooolllll!!! Foi a primeira vez que fui ao Maracanã, mas a mamãe, ao tirar por seus comentários, foi a primeira vez
que ela ouviu falar em futebol. Toda interessada, perguntou:
- Almiro, quem é aquele homem de camisa amarela correndo no campo?
Um tempo depois, indignada, ela quis saber: - Por que o jogador do Flamengo não
parava de segurar o jogador do Fluminense?
Mais na frente, assustada e preocupadíssima quando um jogador caiu: - Ai meu
Deus, o quê vão fazer agora?
E nós ficamos a nos perguntar: - Quem se candidata a explicar o impedimento?
Uma regra de quase todas as viagens é desregular completamente a rotina de
alimentação, e nessa excursão não foi diferente. Mudaram os horários, as
quantidades ingeridas e, principalmente, a qualidade dos alimentos.
Experimentamos muitos peixes, mariscos e saborosos temperos exóticos. Em um
desses almoços, num restaurante muito conceituado do Leblon, papai escolhia com
todo o cuidado seu prato, pois apesar de muito apreciar peixes e mariscos, tem
uma séria alergia a camarão e afins. Depois de olhar e analisar cuidadosamente,
encantou-se com um prato à base de “cavaquinha”. Em dúvida, perguntou:
- Elcy, cavaquinha é peixe ou marisco?
Mamãe: - Acho que é peixe e pelo jeito deve ser delicioso. Prova Almiro!
Animadíssimo, ele pediu o “peixe”, e como o casal tem um rol de conhecimentos
bem mais amplo que os nosso, ninguém questionou. Foi só acabar de comer, na
mesma hora ele começou a sentir algo incomodando. Tomou imediatamente um
ante-alérgico oferecido por Karina. O remédio deve ter diminuído os efeitos da
reação alérgica mas não a impediu completamente. Em poucas horas sua boca fazia
inveja em Angelina Jolie e os olhos não deixavam nada a dever para Rocky Balboa
na derradeira luta de cada um dos episódios de sua saga. A cavaquinha, que
agora sabemos tratar-se de um crustáceo de alto potencial alergênico, rendeu
uma noite de cama para o papai e alguns dias com os olhos ainda um pouco
inchados.
Durante a estadia fomos ainda no Jardim Botânico, nas pedras do Arpoador, na
Lapa, na feirinha de Ipanema, assistimos algumas peças e passeamos de bondinho
até o morro da Urca e o Pão de Açúcar. Nesta empreitada, do alto do Pão de
Açúcar, contemplando com Cauê a grande cidade recortada por morros, vegetação e
mar, cheguei próximo ao seu ouvidinho e sussurrei:
- Olhe bem meu filho. Você ainda vai viajar muito na sua vida, mas acredito que
não irá conhecer cidade mais linda no mundo.
A minha intenção não era sugestioná-lo, queria apenas que ele registrasse na
memória aquele momento, que fotografasse mentalmente para comparar com tudo que
ele ainda vai ver, e então tirar suas próprias conclusões. No futuro veremos se
funcionou. Talvez para ele seja cedo ainda para formar qualquer conceito, mas
para mim não. Ainda quero ver muita coisa e conhecer muitos lugares mágicos,
mas por enquanto posso dizer que voltei do Rio com a impressão que tinha antes
bastante reforçada: que Cidade Ma-ra-vi-lho-sa.