quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Em tempos de transição lingüística




Recentemente li um artigo de Miguel Sanches, na edição especial da revista Nova Escola, sobre a nova ortografia da língua portuguesa, o qual me fez atentar para algumas questões. Fui à banca de revista para comprar apenas um jornal e lá estava ela, a tal revista, acenando para mim como se não pudesse mais viver – ou escrever – sem suas preciosas orientações. Tudo bem, o assunto tratado merece mesmo atenção.

A mudança proposta é o resultado de um acordo para unificar a ortografia oficial dos países de língua portuguesa, a fim de aproximar as nações que falam e escrevem o português (Brasil, Portugal, Angola, Timor-Leste, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Moçambique) e fortalecer mundialmente o idioma. No Brasil, a mudança está em vias de ser confirmada por um decreto do Presidente, para entrar em vigor em 2009. A partir daí, todos os textos oficiais deverão seguir a nova gramática. Nas demais manifestações escritas, as duas regras conviverão pacificamente até o fim do ano de 2011, quando então a tolerância – ao menos acadêmica e oficial – será zero.

No artigo de Sanches, ao qual me referi no início, ele vislumbra que os cuidadosos escritores de hoje, que se esmeram em tantos acentos, hífens e tremas, serão rotulados como “os do tempo da trema”. E olha nós aí, no meio desse bolo.

Curso atualmente uma especialização na área de arquitetura e engenharia civil, na qual, na fase de conclusão, terei que produzir um artigo técnico de aproximadamente vinte páginas. Escrever não me assusta, até gosto. O que me deixa, no mínimo, insegura, é escrever em tempos de transição lingüística, mais precisamente no início de 2009, o primeiro semestre dos três anos do processo de mudança.

Fiquei matutando, se escrever conforme as novas regras, qualquer coisa entre 80% e 90% dos leitores iniciais pensarão: “a toupeira que escreveu isso não se deu o trabalho sequer de acionar o corretor ortográfico do Word”. Se escrever como hoje fazemos, meu querido artigo, daqui a três anos, será visto como uma coisa “do tempo que se escrevia 'jiboia' com acento” (porque não será mais assim). Não quero parecer nem mais burra, nem mais velha, do que realmente sou.

Seja como for, a coisa não é muito simples. Podemos nos preparar para alguns anos de dúvidas e muitas consultas aos manuais práticos, de preferência, de bolso. Para ter uma “idéia” (que perde o acento) a “saída” (que continua com acento) será “agüentar” (que perde a trema) algumas investidas na gramática para lembrar dos ditongos, hiatos e outros companheiros. Se o português, não o da padaria da esquina, mas sim, o idioma, já é confuso por sua enorme riqueza e algumas incoerências, então, o que esperar do futuro? O jeito (que é com “j”, e continua assim, apesar de ter som de “g”) é relaxar (que é com “x”, mas bem que poderia ser com “ch”) e, talvez (com “z”, mas por que não com “s”?) usar (com “s”, mas com o som descaradamente de “z”) a transição lingüística (que perde a trema) como desculpa para nossos deslises (que, pelo amor de Deus, é com “z”).

sexta-feira, 7 de março de 2008

Longe de ser uma crônica esportiva




Se tivesse como ofício ser cronista esportiva, teria sérias dificuldades para garantir o leite do meu filho. Acho que uma das qualidades da crônica de esporte é a de ser praticamente instantânea. O jogo ou a competição rolou a noite, no outro dia pela manhã lá está ela, estampando as percepções do cronista nas páginas do jornal. Quando tem o prazo mais estendido é, no máximo, semanal. Esta crônica é um pouco diferente, também foi motivada por um evento esportivo, mas que rolou em novembro de 2007. Trata-se do jogo de futebol Bahia x Vila Nova, que encerrou a participação do Esporte Clube Bahia no campeonato brasileiro de futebol da série C, resultando na ascensão do time para a série B. Comecei a escrever algumas linhas logo depois do evento, mas tempo passou e os pensamentos ficaram esquecidos na gaveta, pelo menos até agora.

Antes de qualquer coisa, vamos esclarecer: não sou Bahia desde criancinha. Meu primeiro time foi o Fluminense do Rio, paixão que herdei de meu pai. Já tive camisa, bóton e saía pelas ruas de Belém com bandeira em punho para comemorar as conquistas do clube. Contudo, crescendo no Pará, quando comecei a me entender como gente, achei que tinha que ter um time na terrinha. Novamente fui influenciada por papai, e não foi para puxar o saco, somente achava que ele era o maior conhecedor de futebol que existia e, se eram suas escolhas, era porque deveriam ser os melhores. Assim, optei pelo Paysandu, o conhecido Papão da Curuzu. O envolvimento com o Papão cresceu e acabei esquecendo um pouco o primeiro amor - o Fluminense. Estava no campo do Mangueirão com amigos quando o Paysandu, vencendo o Guarani por 2x0, foi campeão da Taça de Prata em 1991, subindo para a primeira divisão. O estádio estava lindo todo coberto de branco e azul calçola.
Quando me mudei para Salvador, me envolvi ainda mais com meu clube paraense. Acompanhava apaixonadamente os campeonatos e "batia boca" com os baianos sobre jogos e resultados. Comemorei a nova conquista do Papão na série B e a subida para a primeira divisão em 2001, a conquista da Copa dos Campeões em 2002 , a participação na Libertadores das Américas de 2003 e sua histórica vitória sobre o Boca Juniors dentro de La Bombonera por 1x0. Este episódio merece um breve comentário pela raça e bravura do feito.

Sou Paysandu, sou loura, mas não sou burra. Sei que meu time, apesar das conquistas relevantes em âmbito regional, não tem grande expressão nacional, e muito menos internacional. Por outro lado, o Boca, ainda mais na Bombonera, é uma lenda. O mito da "panela de pressão" faz tremer qualquer adversário e, justiça seja feita, poucos são os desafiantes que lá se saem bem. Com o Papão foi um pouco diferente. O estádio fervia e logo no primeiro tempo, no calor dos acontecimentos, perdemos Robson com um cartão vermelho, nosso artilheiro conhecido como "Robgol". Para completar, no segundo tempo tivemos que engolir outro cartão vermelho, desta vez para o volante encrenqueiro Vânderson, que, como disse uma crônica da época, era "o mais argentino dos jogadores do time". Resumindo: o prognóstico era sombrio. Mas os paraenses, com muito açaí nas veias, não se entregam facilmente, e com nove jogadores em campo foram atrás do resultado. Foi dos pés de Iarley que saiu o gol que nos deu a vitória e levou à loucura os torcedores do Paysandu e do Boca que lá estavam, claro, por motivos diferentes. Naquela noite o Pará desceu quadrado goela abaixo de nostros hermanos porteños. No ano seguinte o Boca, reconhecendo o talento de nosso atleta, contratou Iarley para jogar na Argentina.
Mas os dias de glória ficaram distantes e fazia tempo que o Paysandu não me dava nem um motivozinho de alegria. Neste meio tempo comecei a namorar com um "baheea", ou melhor, um baiano torcedor do Bahia, e como coisa boa é namorar, iniciei também uma paquera com o time tricolor que, vamos reconhecer, tem lá seus encantos. O quê melhor que a Fonte Nova tremendo para seduzir uma pretendente à Bahia. Foi a tática utilizada pelo meu consorte para me envolver. Fomos, em plena quarta-feira, assistir Bahia x Nacional da Paraíba pelo octogonal final da série C, na Fonte Nova. O time disputava a vaga para a série B e vinha de alguns resultados não muito favoráveis. Pé-quente que sou, não perco viagem, nas poucas vezes que fui ao campo saí com resultado favorável. Desta vez não foi diferente, o Bahia ganhou por 3x0, com superioridade indiscutível. Tudo bem que o adversário não era lá essas coisas, a metade do time era roda-presa e a outra metade era deficiente visual. Não importa, o Bahia brilhou e ficou muito bem na foto. No campo devia ter em torno de quarenta e cinco mil pessoas, e foi suficiente para colorir e balançar a arquibancada. Como profissional da construção civil, não pude deixar de observar o estádio. Mesmo velho e mal conservado, o templo do futebol baiano cumpre sua função como arena. Quase lotado, me remeteu aos filmes épicos que revivem os gladiadores ou os jogos da antiguidade clássica, mas, que pena, sem um protagonista como Russell Crowe. De qualquer forma, o ambiente era realmente envolvente. Ponto para o Bahia.

Quatro rodadas depois, com o Bahia capengando no sobe-não-sobe para a segundona, lá vamos nós novamente para o campo assistir o duelo contra o Vila Nova de Goiás, no penúltimo jogo do campeonato. Se ganhasse, não dependeria de ninguém para subir e, claro, faria explodir a Fonte Nova. Se empatasse, estaria quase dentro, mas ainda dependendo de outros resultados. Se perdesse, aí meu filho, “só Jesus salva!”

Aos 44 minutos do primeiro tempo, Elias entra na grande área determinado a deixar seu nome registrado naquela tarde de domingo, mais o goleirão do Vila não deixa por menos e manda o afoito jogador para o chão.
_ É pênalti! É pênalti seu juiz, não "tá" vendo não?
E o árbitro confirmou. Convoca-se, então, o matador do time para a cobrança. Apresenta-se Nonato, com sua atlética silhueta de barril, para carimbar o passaporte do tricolor. O estádio mudo, todo de pé, esperava a hora de gritar com o peito aberto: goool!!!! Lá vai ele, com uma convicção de dar sono e então... filho da “P”, o cara perdeu o pênalti. Como ele conseguiu essa proeza? Não sei! Só sei que foi assim, e fim do primeiro tempo.

O segundo tempo foi àquela maravilha. O jogo estava tão interessante que não conseguia desviar minha atenção do gordinho sentado dois degraus abaixo na arquibancada. Acho que ele não sabia quem estava jogando, ou sequer que modalidade esportiva estava sendo celebrada. Seus olhos, cabeça, tronco e membros percorriam ansiosamente todo o estádio procurando qual seria a próxima guloseima que iria mastigar. Churrasquinho, pipoca, amendoim, sorvete, balinha e por aí vai. Era um filme engraçado de assistir. O fulano não parou de comer o jogo inteiro e consumiu tudo que podia ser comprado no local.

Fim de jogo: 0 x 0. Com os outros resultados do dia, o Bahia pôde comemorar: estava na segundona. Dá-lhe “Baheeeea”! O campo foi invadido e completamente tomado pelos torcedores. Mas não posso deixar de registrar o acontecimento triste da tarde. Ainda no segundo tempo, sem que a grande maioria dos presentes no local percebesse, parte da arquibancada do anel superior desabou de uma altura aproximada de 15 metros, matando sete pessoas. Sete torcedores que, como nós, saíram de casa para assistir um jogo e se divertir. Lamentamos! Alguns dias depois o Governador deu uma entrevista anunciando que iria demolir a Fonte Nova.

Morando em Salvador, desejei por muito tempo conhecer o famoso reduto do Bahia. Demorou bastante, mas a chance enfim chegou, e por uma grande ironia do destino, presenciei naquela triste tarde o último jogo do histórico estádio da Fonte Nova.

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Era indizivelmente bom







Não há nada, para mim, mais iluminado que o sorriso do meu filho, um menino de quatro anos. O sorriso, o riso, a gargalhada. Ele é uma dessas crianças que tem o riso fácil, que ri com a boca, com os olhos, com o rosto e o corpo inteiro. Temos nossas brincadeiras costumeiras, endereços certos para chegarmos a boas doses de riso, mas, o mais legal é quando eles surgem por acaso, imprevistos.

Numa dessas noites qualquer, no meio da semana, estávamos o pequeno, Eliane - que trabalha na nossa casa - e eu, no recesso de nosso lar . No semestre anterior, ele havia desenvolvido com sua turminha da escola um projeto relacionado às brincadeiras infantis. Amarelinha, pega-pega, boca-de-forno, essas coisas que nossos avós já brincavam em seu tempo. O trabalho rendeu, além de muitas horas de deliciosa diversão entre eles, um caderno onde cada página traz a descrição de uma brincadeira escrita pelas próprias crianças. Que coisa linda que ficou! Aquelas mal traçadas linhas, letrinhas irregulares, palavras inacabadas. Com o caderno na mão, começamos aleatoriamente a investigar as brincadeiras.

Pega-pega, esconde-esconde, vamos de amarelinha. Improvisamos a brincadeira dentro de casa, com as divisões da cerâmica do piso. O pequeno, radiante, explicava em detalhes como se brincava, enquanto eu e Eliane fingíamos nunca ter visto ou ouvido falar do joguinho. Uma peça de lego funcionou como pedrinha e pulamos um bom tempo.

Agora é a vez de três-três passará. Confesso que demorei um tempinho para entender como brincava, pois não tínhamos gente suficiente para fazer pra valer. Eliane, que participava de tudo, tem vinte e três anos, mas juro, olhando ela brincar ninguém daria mais do que sete. Que tal boca-de-forno?

-Boca de forno!
-Forno!
-Faz tudo que eu mandar?
-Faz!
-Se não fizer?
-Bolo!!!!

O líder tem que determinar a tarefa e o restante se esforçar para cumpri-la, se não leva bolo (palmada na mão). Pega aquilo, vai até não sei onde. As ordens não podem ser questionadas. Bolo pra cá, bolo pra lá.

Vamos, então, experimentar a corrida de caranguejo. Sentados no chão, anda de costas para trás com os pés e mãos no piso, e não pode sentar. Eliane tropeçou, o pequeno caiu de tanto rir e eu pude, enfim, atravessar a linha de chegada com folga.

Meu menino não parava de rir. Ele estava tão empolgado e feliz com aquela movimentação que as gargalhadas se sucediam por qualquer coisa que fosse. O pequeno rostinho alvo, contornado por cachinhos cor laranja, brilhava como uma luz de fonte inesgotável. "Era indizivelmente bom".

Essa frase, que adoro, não é minha; é de Vinícius, que escreveu para descrever na crônica "Menino da Ilha" suas experiências quando criança na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro. A li por volta dos vinte e cinco anos e não esqueci mais. Acho que esperei por todo esse tempo para, olhando no rosto de meu filho, naquela noite, ter exatamente essa sensação: algo indizivelmente bom. Não falei nada, somente pensei com os meus botões, saboreando cada segundo. Valeu a pena esperar todos esses anos.