segunda-feira, 16 de abril de 2007

E nada de Gloria Gaynor


Em Salvador, morar perto das praias as quais, no fim-de-semana, a cidade toda encara engarrafamentos para chegar, tem seu preço. Boa parte dos artefatos e serviços mais específicos só estão disponíveis na “cidade”, e tenho que enfrentar mais ou menos uns 40km para encontrá-los. Esta semana, numa dessas empreitadas, fui à Gamboa, no trecho sentido Campo Grande – Av. Contorno, e me lembrei de um sábado à noite que vivi naquela área.

Havia uma data que, motivada por entusiasmados comentários de amigos, queria conhecer uma boate gay no referido endereço: a “Tropical”. Mas, vamos combinar, por mais antigo que pareça, não é qualquer um que topa essa programação. A maioria das pessoas tem, na ponta da língua, uma lista de boas razões para não irem, quase todas recheadas de pré-conceitos dos mais caretas; e depois, ainda dizem que os freqüentadores da boate é que são cheios de “frescura”. Mas isso não era problema, eu tinha um amigo perfeito para a ocasião; não era gay, mas também curtiria a noitada.

Saímos em torno de meia-noite e, para esquentar, fizemos um pit-stop num bar na Ladeira da Barra, com vista para a Baía de Todos os Santos; um local que tinha a fama de ser GLS. Pelo que pudemos presenciar, era só fama. Encontramos um ambiente dos mais ortodoxos: casais de namorados apaixonados e animados grupos de confrades. Eu e meu amigo não nos enquadrávamos em nenhum dos dois casos. Havíamos namorado,  mas, no momento, não tinha nada entre nós. Mesmo sendo assim, quando estávamos juntos, ficávamos numa brincadeira de gato e rato, alternando os papéis, sobrando para mim, na maior parte das vezes, o papel de rato. O papo fluiu entre conhecidos em comum, músicas, filmes e acontecimentos recentes ou antigos, de um e de outro. Quase duas da manhã, saímos rumo ao nosso destino principal.

Na porta da boate, logo me animei. Apesar da chuva, a entrada estava movimentada, com uns travestis bonitos e produzidos. Ao entrarmos, nos deparamos com um ambiente de boate não sofisticada, mas como qualquer outra: luz negra, jogos de luzes piscando, fumaça de gelo seco, fumaça de cigarro e aquele repetitivo som de tum-tum-tum. A característica especial era o público: 99% masculino. Não era exatamente o que imaginava. Sabia que havia um show de transformistas, então, em algum lugar, tinha que existir um palco e um espaço adequado para espetáculos. Saímos pela boate procurando e cruzamos todo o ambiente, que tinha no fundo uma parede espelhada. O espelho nos confundiu e continuamos andando até nos depararmos com nossa própria imagem refletida. E aí, acabou? E o palco? E todo o resto? Puxei conversa com um rapaz muito dançante e perguntei pelo show. Ele me informou que havia um pavimento superior e que as apresentações aconteciam lá. No primeiro andar, encontramos um espaço reduzido também com luz negra, um bar, um pequeno palco e algumas mesas. Como o show ainda não ia começar, descemos e fomos sacudir. Na boate rolou a dança de uns gogo-boys. Nada de mais, eu mesma sou capaz de performances mais interessantes. Curtimos um pouco e fomos assistir o esperado show. As apresentações eram solos de travestis dublando cantoras como Gloria Estephan. Muito maquiadas, com cabelos ou perucas vistosas, saltos altíssimos e vestidos sensuais. As performances eram contidas, sem jogos de pernas ou movimentos bruscos, e mais caras e bocas.

Estava legal, mas não tinha nada a ver com o que havia, literalmente, fantasiado. Confesso que estava totalmente influenciada por filmes como “Gaiola das Loucas” e “Priscila, a Rainha do Deserto”. Esperava, e posso até dizer que queria muito, encontrar um lugar exageradamente colorido, cheio de drag queens, transformistas de patins, um público mais escandaloso e performático, e uma forte disposição de todos para interagir de modo geral. Para os shows, a expectativa eram muitas pessoas no palco, roupas de espetáculo, e pernas e braços passando para todos os lados. Nos intervalos das apresentações, achei que dançaria ao som de Gloria Gaynor, com o celebre “I will survive”, ou talvez “It’s raining man”. Nem uma coisa, nem outra, mas não posso dizer que me decepcionei, só caí na real. Meu amigo fez algum sucesso. Despertou o interesse de um baixinho, que lhe lançou uns olhares fulminantes, e também pegou alguns apertos quando nos amontoamos para ver o show. Eu saí no zero a zero.

Quando fomos embora, aproveitando que estávamos ali perto, tentei de todas as formas convencê-lo a pularmos o muro do Passeio Público, que ficava fechado e vigiado, para  vermos o sol nascer. Lógico que a parte do “sol nascer” era uma lorota. A orla da Baía de Todos os Santos é famosa por proporcionar aos apreciadores um belíssimo pôr-do-sol, não seria porque estávamos lá, naquela madrugada, que o sol resolveria nascer ali. Ainda assim, quando clareasse, haveria a vista do imenso azul, e como canta Gil, “não qualquer azul (...)/ o azul de qualquer poesia (...)/ é o azul que a gente fita/ no azul do mar da Bahia”. No mais, tínhamos grandes chances de viver uma excitante aventura, mas ele não topou.

Termino como o Pescador de Ilusões: “valeu a pena”. O passeio serviu para desmistificar aquela “aura” que criamos em torno dos ambientes e eventos gays, onde imaginamos que os homossexuais têm que ser necessariamente “espetaculosos”, e tudo deve ser como uma Parada Gay. Nessa tribo, como em todas as outras, as pessoas saem para se divertir, ver outras pessoas e namorar, sem qualquer compromisso de proporcionar show para quem quer que seja. Se você é da noite, gosta de boate e quer variar o point, é uma. Deixe em casa seus pré-conceitos e vá curtir. Eu recomendo.

sexta-feira, 13 de abril de 2007

La Dolce Vita


Quando iniciei o blog, planejava escrever sobre uma série de coisas que povoam minha cabeça, mas de uma maneira que pudessem resultar num conteúdo inteligente, divertido e interessante para quem lesse. Mas o fato é que, no dia-a-dia, sou atropelada pelos acontecimentos domésticos, que provavelmente não são interessantes para mais ninguém, mas, para mim, por vezes, são até bem divertidos.

Essa semana começou com uma reunião na escola do meu filho, logo às 9h da segunda-feira. Imaginava ser uma reunião ordinária. Ledo engano. Era uma reunião extraordinária. O rapazinho, com três anos, anda explosivo além da conta e, quando contrariado, perde o controle e reage de forma pouco amigável. Fiquei pensando no que poderia fazer e passei o resto da manhã com uma sensação de incompetência me perseguindo.

Saí do trabalho meio-dia e, como costumeiro, passei para pegar o pequeno na escola. Chegando em casa, o portão eletrônico, que já dava sinais de enfermidade, não abriu. Tudo bem. Deixamos o carro fora e entramos. Há pouco tempo uma equipe da prefeitura vem realizando limpeza no rio que passa junto de minha casa. Nesse período, todos os dias, quando saio de casa e quando retorno para o almoço, vejo aquela “homaiada” estacionada em minha calçada, com olhos atentos a todos os nossos passos. Considerando que moro sozinha com o filhote, a situação me deixa um pouco preocupada. Meu ex-marido, pai do baixinho, tinha ficado de levar em casa algumas roupinhas do garoto que estavam com ele. Aproveitando a oportunidade, pedi que agisse como se morasse na casa, cumprimentasse os homens e fizesse notar sua presença. Nessas horas é bom ter uma figura masculina para posar na foto. Acho que a encenação foi satisfatória.

Depois do almoço, levei meu filho numa clínica ortopédica no bairro vizinho, pois tinha machucado a mãozinha numa queda há alguns dias e a mesma continuava um pouco inchada. Acho que por uma questão de segurança, ele levou sua espada - de plástico, comprada por R$3,00 nessas lojas que costumavam ser de R$1,99 - embainhada na cintura. Sem dúvida o rapaz estava num dia inspirado: comunicativo, perguntador e muito boa praça. Na clínica, conversou e brincou com a recepcionista, o servente, o médico, o técnico em radiologia, a enfermeira e alguns outros pacientes, mostrando toda sua habilidade como espadachim. Depois de diagnosticada uma pequena fratura em um dos ossinhos da mão, foi indicada a imobilização. A enfermeira chegou com o material e pediu a ele a mão para engessar, enquanto, ao lado, eu e o médico conversávamos. Concluído o gesso, a enfermeira mostrou ao médico perguntando se estava bom. O médico, tranqüilamente, respondeu que o gesso estava ótimo, mas estava na mão errada. O baixinho imediatamente falou meio cantarolado: “te enganei!”. Caímos todos na gargalhada. Eu mesma tive uma crise de riso e as lágrimas chegaram a descer. A enfermeira falou: “você rapaz...”. E ele respondeu rindo: “você é uma maluca!”.

Saímos com o gesso na mão certa, deixei o pequeno em casa e fui para o trabalho. À noite, quando voltei, o portão novamente não colaborou. Desci e fiz todos os procedimentos necessários para abri-lo na mão grande. Um portão de madeira de aproximadamente 3,00m x 2,40m pesa, e novamente me veio à cabeça que, também para essa situação, a figura masculina fica linda na foto. Tudo bem, dá para resolver. Entrei e começou a novela que vivo quase todos os dias quando chego em casa à noite. A esta hora, meu filho está com saudade e querendo atenção. Da mesma forma, é a hora da refeição dos cachorros, um casal de labradores, e do gato, um exigente vira-lata que come o dia todo, e já estão morrendo de fome. Enquanto entro, o pequeno fica me chamando e puxando, os cachorros latem e correm de um lado para outro, me cobrando a hora do rango, e Pajé mia como se não comesse há dias. Às vezes, por falta de sorte, na mesma hora toca o telefone ou Eliane, minha assistente para assuntos domésticos, resolve relacionar verbalmente tudo o que preciso comprar. Sempre me vem à cabeça uma música que ouvia quando era criança e que dizia mais ou menos assim: “a véia debaixo da cama/ a véia criava um gato/ de noite o gato miava, o cachorro latia, o pintinho piava/ ai meu Deus como eu sofria”, e me dá vontade de rir.

No dia seguinte, quando retornei com meu garoto para o almoço, o portão funcionou ao primeiro toque, e entramos sob os atentos olhares da equipe de homens da prefeitura. Já com o carro do lado de dentro do muro, o portão mudou de humor e não quis fechar. Comecei a insistir na tentativa de conseguir, incomodada com a casa escancarada diante da platéia de estranhos. Como não obtive sucesso, desci para, novamente, fazer todo o passo-a-passo para fechá-lo manualmente, deixando o baixinho dentro do carro para ser mais rápida. Enquanto começava os procedimentos, meu filho, seguro no cinto de segurança da cadeirinha, começou a chamar de dentro do carro, pedindo insistentemente que o tirasse de lá. Simultaneamente, Eliane veio correndo até nós com uma cara de susto, para não dizer pânico, pedindo socorro porque havia uma cobra no telhado da área de serviço. Pra completar, a cachorra conseguiu abrir um pequeno portão que existe já dentro do lote, e tem a função de isolar a área de entrada do carro, impedindo que os cachorros fujam quando o portão eletrônico se abre. Segurei a cachorra para que não fugisse e me coloquei na frente do cachorro, para que ele não fizesse o mesmo. Esse foi um daqueles momentos quando, em fração de segundos, passam milhões de coisas pela nossa cabeça. Olhando todo o contexto, não sabia o que resolver primeiro, considerei várias possibilidades de ação e elegi o plano que me pareceu melhor. Comecei tentando, pela última vez, fechar o portão com o controle. Por sorte, consegui. Aí, pude soltar a cachorra, liberar o cachorro, tirar o pequeno de dentro do carro e, então, socorrer Eliane.

Mais do que uma assistente para assuntos do lar, Eliane é uma amiga. Uma garota de 22 anos com um juízo que eu só alcancei em meados dos trinta, já motivada pela maternidade. Na minha ausência, cuida de meu filho com todo o carinho e responsabilidade, além das demais atividades domésticas, mas coragem, com toda a certeza, não faz parte do rol de suas qualidades. Ela tem medo de ficar sozinha em casa à noite, tem medo de rã, sapo, lagartixa e outros bichinhos, fato que, considerando a área onde moro, constitui um problema.

Enquanto caminhávamos em direção à área de serviço, fiquei imaginando que deveria ser uma cobrinha de nada e tudo não passava de um grande exagero de Eliane. De qualquer maneira, não seria a primeira vez que seríamos brindados com a visita do réptil, nem a segunda; para ser exata, seria a quinta vez.

A primeira vez que fui surpreendida por uma serpente dentro de casa devia fazer um ano que morava no local, e ainda não tinha filho. Estava pintando uns artefatos na sala quando a cobra rapidamente entrou e escondeu-se debaixo do estofado. Da outra vez,  apareceu uma no caminho da saída do carro. Na terceira vez eu estava com duas sobrinhas hospedadas em casa. A cobra escondeu-se na área de serviço e foi o acontecimento do dia. Por fim, na quarta vez, o réptil foi realmente convidado. Tratava-se de uma salamanta de estimação de um amigo veterinário. A cobra tinha aproximadamente 1,50m, era dócil e todos, incluindo o baixinho, carregamos o animal, tiramos foto e tudo. Acontece que em todas as oportunidades anteriores eu ainda estava casada e, tenho que reconhecer, o “ex” tem um talento todo especial para lidar com essas situações. Em todas as vezes que elas vieram sem ser convidadas ele conseguiu reconduzi-las ao rio ou alguma área de vegetação adequada, sem se alterar e sem machucá-las. A que alojou-se na área de serviço, para delírio de minhas sobrinhas, ele pegou com a mão e saiu mostrando para todo mundo. É praticamente um “Indiana Jones”. Só que a situação agora é outra e, apesar de não ter medo e ter muita afinidade com animais e ambientes naturais, não sou nenhuma “Jane”, e não tenho qualquer habilidade de captura.

Já na área de serviço, Eliane não quis nem entrar, de longe me apontou onde o bicho estava e saiu gritando. Quando olhei não acreditei. Só dava para ver a cabeça, parada, observando tudo. A questão é que a tal da cabeça devia ter uns seis centímetros de largura, o que indicava ser uma cobra de tamanho considerável. Além disso, não dava para ver cor ou padrão de desenhos do couro, que poderia dar dicas sobre a espécie. Isso ia exigir medidas extremas e provavelmente teria que contatar algum órgão especializado na captura e remoção. Saí e fui dar uma olhada na lista telefônica, mas a curiosidade foi maior e resolvi espiar novamente. O local onde ela estava escondida era um pouco escuro e tive que chegar realmente perto. Foi quando observei algumas coisas pontudas sobre a continuação da cabeça, ou seja, no pescoço, mas cobra não deveria ter pescoço. Cheguei mais perto e ela movimentou-se, então apareceram as garras. Garras? Cobra incomum, pensei. Foi aí que deu para sacar, não era uma cobra, era um camaleão, ou parente próximo, e o bicho não era pequeno. Então fiquei tranqüila, até onde sei, camaleões não mordem, picam ou oferecem maiores riscos.

Proibi terminantemente Eliane de enxotá-lo com vassoura ou qualquer outra coisa. A orientação era: deixe o animal na dele, a hora que resolver ir embora, ele vai. Acho que o bicho não corria risco mesmo, minha escudeira não ia entrar no ambiente enquanto ele permanecesse lá. Tentei de todas as formas amenizar seu sentimento de medo, dizendo que ele era como um dragãozinho dos contos de fada que não cuspia fogo, mas acho que ela não curtia muito as historinhas infantis. Todo esse alarde acabou assustando também meu garoto que, em geral, é bem despachado com os animais, mas nesse caso, só topou ver a um metro de distância e no meu colo. Não demorou muito para o bichinho ir embora por decisão própria e a paz voltar a reinar no lar. De pensar que ainda estávamos na terça-feira; mal podia esperar pelo resto da semana.

Ah, sobre o portão eletrônico, levei o controle para a assistência técnica, que me garantiu que o problema era a bateria, trocando-a na mesma hora. Mas, até hoje, ele ainda não funcionou.