quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Bons momentos




Quanto vale um momento de muito prazer? Tem preço? Então, quanto valeria um momento de êxtase? Ei, espera aí! Não é bem disso que estou falando! É muito bom também, mas não é o tema. Abstraia e vamos começar novamente, canalizando para um lado mais subjetivo. Então, quanto vale? Acho que vale investimentos, algumas doses de sacrifício e inúmeras horas de espera, se necessário. Neste fim de semana que passou, vivi um destes momentos.

Deitada sobre um grande platô de pedra na gruta do Lapão, depois de descer em um rapel na negativa de aproximadamente 55m, contemplava o imenso salão na chegada da gruta, observando o restante do grupo descer, um a um. Aparentemente poderia parecer apenas mais um lugar privilegiado pela beleza natural, mas todo o contexto, para mim, significava mais. Acho que ninguém realmente notou o que se passava comigo naquele momento, também achei desnecessário comentar. Curti, solitariamente, cada segundo da experiência. Quando a lágrima rolou vagarosamente, celebrando a felicidade de estar viva naquele lugar, naquele exato momento, enxuguei rapidamente, não por não querer compartilhar, mas por não querer verbalizar nem um instante do que se passava.

A Chapada tem mesmo esse poder. Para situar, estou falando da Chapada Diamantina,e a gruta onde estávamos localiza-se a aproximadamente uma hora e trinta minutos de caminhada pela trilha a partir de Lençois. Já havia andado algumas vezes pela região, em trakings de três ou quatro dias sem vestígios de civilização, e conhecido lugares muito especiais, mas cada lugar e momento tocam a gente de maneira diferente. Além disso, por razões diversas, havia seis anos que não pisava naquelas terras. Foi bom voltar.

Gostaria de poder multiplicar esses momentos de êxtase diante de acontecimentos imprevistos. Talvez exatamente por assim ser tais momentos, imprevistos e não reproduzíveis, sejam eles tão especiais. Mas alguns ingredientes necessários para que aconteçam são possíveis de identificar: 1) lugares mágicos; 2) se acompanhada, que seja de pessoas especiais; e pelo menos nestes momentos, 3) ter “a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranqüilo”.

Aos vinte e cinco anos, na praia de Ajuruteua, localizada em Bragança - Pará, vivi uma sensação semelhante. Tinha ido acampar nas dunas da praia com meu namorado, que algum tempo depois viria a ser meu marido. Chegamos quando anoitecia e, rapidamente, tivemos que descarregar o material para montar o acampamento antes que escurecesse. Quando tínhamos tirado tudo do carro e a barraca estava em pé, mas ainda não totalmente fixada no chão, fomos surpreendidos por uma tempestade de areia. Mal podíamos enxergar, víamos apenas os vultos enquanto ainda foi possível ver, porque com pouco tempo a areia entrou nos olhos e não consegui mais abri-los. Ele, por usar óculos, teve uma certa vantagem, e conseguiu localizar-se e tomar as providências necessárias: colocar eu e toda a “tralha” de volta no carro. Não seria mais possível acampar. Aguardamos um tempo dentro do carro até que a tempestade se dissipasse para irmos procurar uma pousada. Quando parou, resolvi tomar um banho de mar, para tirar a areia grudada no corpo. Ele ficou esperando no carro. Não sei qual era a lua no dia, mas o céu estava limpo e a noite nem tão clara, nem tão escura. A maré estava baixa, tanto que chegando à água não tinha mais contato visual com ele. Quando comecei a entrar no mar, não creditei no que vi. A sensação foi uma mistura de surpresa, medo, curiosidade e deslumbramento. À medida que ia entrando e mais volume de água deslocando, mais brilhava a água em milhões de gotículas fosforescentes esverdeadas. Pelo amor de Deus, o que era aquilo? Nunca tinha visto, nem ouvido falar em algo semelhante. Saí correndo para buscá-lo, mas fui com um pouco de medo que fosse um delírio meu que não pudesse ser compartilhado ou que, sendo real, quando voltasse não existisse mais. Ao chegar, não falei e nem expliquei nada, disse apenas que tinha que ir comigo para ver algo e tinha que ser já. Quando voltamos, as luzes ainda estavam lá. Entramos no mar e nadamos maravilhados. Sentados no raso, ficávamos extasiados quando, ao jogar a água para cima, ela caía rolando pelos nossos corpos dividida em milhares de pontos luminosos. Simplesmente brilhávamos. Naquele momento, aquilo para mim era um milagre. Não queria saber se tinha uma explicação científica, se era uma interferência alienígena, ou se os dois dividiam um delírio. Era simplesmente um milagre.

Ao retornar para Belém, contei para algumas pessoas, que também não sabiam do que  tratava-se e escutavam a história com uma certa desconfiança. Quase um ano depois, assistindo na TV um programa de ecologia, descobri tratar-se de um fenômeno da natureza chamado bioluminescência, onde microorganismos em suspensão na água tornam-se fluorescentes, provavelmente em função de alterações de concentrações de nutrientes na água. Meu lado racional gostou de ter a informação, mas prefiro guardar a lembrança como a de um milagre que tive o privilégio de presenciar.

Outra vez, quatro anos antes, quando tinha vinte e um, estava na ilha do Marajó com um grupo de dez amigos. Essa maravilha localizada no Pará é considerada a maior ilha flúvio-marítima do mundo, cercada pelo Oceano Atlântico e pelos rios Amazonas e Tocantins, com uma característica rara: praias onde as águas ora estão doces, ora estão salgadas. Passávamos o dia na praia de Joanes, no município de Salvaterra. Não sei como as coisas estão por lá hoje, mas nessa época, em 1990, a praia ainda era bem selvagem, e a vegetação chegava até a areia. Depois de curtir algumas atrações do local, como as ruínas de pedra da velha igreja jesuíta erguida no século XVII, fomos – eu, uma amiga e dois amigos – explorar a área. Entrando um pouco pela mata, nos deparamos com uma velha casinha de madeira, bem humilde. Encostado na janela estava um velhinho, sozinho, contemplando placidamente a calmaria do lugar. Ele era franzino e tinha a barba e os cabelos longos, bem branquinhos, uma imagem que lembrava o misterioso “véio do rio”, da memorável novela “Pantanal”. Puxamos conversa e ele falava pouco, mas papo vai, papo vem, fomos parar nos fundos da casa, onde havia um igarapé na beira da varanda com uma canoa encostada. Pedimos emprestada a canoa e saímos os quatro, igarapé à dentro.

O termo igarapé é de origem indígena e significa “caminho de canoa”, o que estava totalmente condizente com a situação. O caminho era um “furo”, entretenimentos naturais da ilha, que são braços de rios ou de igarapés por onde só podem navegar pequenas embarcações, porque são margeados por vegetação nativa com trechos bem estreitos. Nosso roteiro não devia ser muito conhecido e visitado, pois era tudo muito selvagem. No trajeto, aos poucos a conversa foi cessando para dar lugar ao som da mata. Ouvíamos um sutil barulho do movimento da água provocado pela canoa e o remo, galhos quebrando pelo agito dos bichos e a música, às vezes discreta, às vezes estridente, entoada pelos pássaros e outros animais. Em determinados momentos o caminho ficava tão apertado e a mata tão densa que chegava a fazer um túnel e tínhamos que abaixar na canoa para conseguirmos passar. A energia era indescritível. Uns quatro anos depois, voltei ao local. Corri tudo procurando a velha casinha, a canoa, o “véio do rio”, mas não achei. Perguntei para uns nativos, e ninguém conhecia ou lembrava ter visto ou ouvido falar. Tenha lá uma explicação lógica, ou seja uma alucinação coletiva, eu vivi aquilo e isso ninguém me tira.

Ao contrário do que possa parecer pelos relatos anteriores, pelo menos para mim, estar rodeada pela natureza não é pré-requisito indispensável para viver experiência semelhante. Em outra oportunidade tive a mesma sensação dentro de uma igreja completamente vazia. Não estava lá por motivação religiosa ou turística. Simplesmente estava lá, sozinha, atrás de uma balaustrada no primeiro pavimento, observando a nave principal, o altar, as imagens; tudo muito singelo. A igreja era a de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, em Belém. O início da construção atual data do século XVIII e o projeto foi doado pelo arquiteto italiano Landi, que assina várias outras edificações do mesmo período que são referência na cidade. Na literatura existem alguns relatos da labuta dos negros carregando pedra e outros materiais durante a noite, para erguer seu templo. Não sei exatamente o que me comoveu, mas passei alguns minutos mágicos envolvida pela atmosfera daquele lugar.

Voltando à viagem deste fim de semana, nem todos os momentos foram “sublimes”, mas quase tudo foi divertido. Voltei com algumas feridas nos pés, mas o que é isso diante de todo o contexto. Concluindo, não posso indicar endereços certos para vivências especiais como as relatadas, mas se é para arriscar um local bastante propício, o lugar é exatamente esse: Chapada Diamantina. Confira você mesmo.