terça-feira, 23 de outubro de 2007

Memórias de viagens I: dois paraíbas na cidade grande


Ele, não exatamente um paraíba. Um baiano, da capital, muito tirado a esperto. Ela, veio de mais longe, do norte, quase da selva. Aparentemente desligada, imagem reforçada pelos longos cabelos dourados, mas era apenas um equívoco gerado pela aparência. Os dois, ele e ela, em São Paulo, por nove dias.

A programação era extensa. Muitas indicações de amigos, lugares que eles queriam rever, lugares novos para conhecer, eventos com data e hora marcadas. Nove dias dá para muita coisa. Mais ou menos. Se o horário médio para acordar não fosse 10h da manhã; se o percurso, em geral, não fosse uma pernada, um ônibus, metrô, troca de linha, metrô, pernada novamente (só num trecho); se não fosse o trânsito, as indecisões, as mancadas.

Vamos lá! Começaram pelo Museu do Ipiranga. Descolaram uma carona e ótimas companhias. Que bom! Era mesmo longe. O edifício, imponente, com três pavimentos, foi construído entre 1885 e 1890 para ser um monumento à Proclamação da Independência. Ele e ela arquitetos,"entendidos", investigaram o estilo arquitetônico, as ordens construtivas, a divisão espacial. Tinha acervo para várias horas de visitação. O cotidiano, a sociedade, o trabalho na grande São Paulo da virada do século 20. Maravilha, se o museu não fechasse às 18h e eles não tivessem chegado às 16h30. Corre, entra em sala, sai de sala. Olha, mas não lê, não dá tempo. No fim, a cada ambiente que saíam apressadamente, as portas fechavam-se atrás. O passeio no jardim, uma volta no parque, nem pensar. Não havia tempo, nem mais luz natural.

Precisavam ir à rua 25 de março. Muitas encomendas, muitas coisas para comprar. Relógios, brinquedos, lanternas, sutiãs, canetas, baterias. Olha, experimenta, pergunta o preço, pechincha, olha em outro lugar, pergunta, negocia, chora, deixa para outra hora. Saem com nada nas mãos.

Vamos ao MASP, conhecido dos dois. Exposição "Da Bauhaus aos dias de hoje"; arte conceitual. Diante de um bastão de aproximadamente 60cm, com anéis articulados e colorido como um berimbau do Mercado Modelo, definido como arte móvel, estabeleceu-se o silêncio. Se a intenção era provocar o deleite, não os tocou. Se era incomodar, eles poderiam sugerir algumas utilizações para o mesmo. Mas deixemos por conta da imaginação de cada um. Sentaram para assistir um vídeo, igualmente conceitual. Analisaram a composição, o ritmo, o vestuário, os personagens, as interpretações, a marca dos carros que protagonizavam as cenas, mas o quê dizer sobre o conteúdo do vídeo? Sobre a alma da obra? Não captaram. Tudo bem, é conceitual.

Haviam muitas recomendações para visitarem o Mercado Municipal. O prédio de época, o burburinho do movimento, o imperdível pastel de bacalhau. Ela, louca para ir. Ele, doido para sabotar o passeio. Vamos hoje. Não tem tempo, está fora da rota. E o que é que tem de bom lá mesmo? Não interessa! Vamos porque vamos! Que horas são? 13h30! Fecha às 15h. Corre, pergunta, anda mais rápido. Onde fica? Logo ali. Chegaram. Por fora, não era bem o que ela esperava. Por dentro, é só isso? Era tudo o que ele queria, e o comentário foi imediato: “vim de Salvador para ver cebola, tomate e batata?” Realmente a Feira de São Joaquim – em Salvador – era mais pitoresca. O prédio era feio e sujo, o movimento era nulo e o pastel de bacalhau não existia. Saíram decepcionados. Ele tripudiando. Ela “P” da vida. No dia seguinte, ao ver numa galeria comercial a foto de um lindo mercado, ela reconheceu a imagem que já havia visto em revistas e TV, e perguntou: “essa foto é do Mercado Municipal?” A resposta foi positiva. Eles tinham visitado o mercado errado.

Voltemos à 25 de Março. Olha mais um pouco. Pesquisa preço, garantia. No bom chinês: - Este “zafira”? - Este “nô zafira”! - Depois a gente volta.

Numa leva só, visita à Estação da Luz, Museu da Língua Portuguesa e Pinacoteca do Estado. A secular estrutura de ferro da estação, a tecnologia e exposição interativa do moderno museu, o bonito prédio e o rico acervo da pinacoteca. E lá mesmo, lá pelas tantas da visitação, depois de várias obras e artistas de projeção nacional e internacional, ele conclui: “gostei de tudo, mas realmente identifiquei-me com essa tela”, apontando para a mesma. Ela ficou chocada. Tratava-se de um óleo sobre tela de aproximadamente 2,50m x 2,00m, de Cândido Portinari. Na obra, datada de 1948 e intitulada “Floresta”, via-se dois veados estáticos no primeiro plano, contemplando a pasmaceira da mata, vários outros veados saltitantes no segundo plano, e diversos outros animais mimosos espalhados pelo quadro. O quê exatamente ele quis dizer com “identifiquei-me”? Vamos embora, que é melhor.

Corrida no Parque Ibirapuera, sushi, shopping center, pizza, Jóquei, barzinhos, lojas de fantasias, outra pizza, festa. É ótimo ir a Sampa. E, antes do avião rumo à Salvador, para finalizar, só mais um pulinho na 25.

É preciso saber viver



São inevitáveis, com o passar dos anos, as reflexões sobre o tempo vivido, o tempo a ser vivido, as avaliações diante do espelho, os balanços de vida. Hoje, a poucos anos de emplacar os quarenta, me pego às vezes divagando sobre o tema. Claro que em âmbito nacional e mundial temos muitos exemplos de pessoas que souberam viver muito bem os anos que lhe foram concedidos, e outras tantas que, por outro lado, passaram por aqui, ninguém sabe para que. Mas não quero falar de grandes feitos, e nem preciso recorrer a figuras públicas. Tenho em mente vivências mais simples, pessoas comuns, pessoas que fazem parte de minha vida.

Há poucos dias estava em Sampa. Minha amiga, minha irmã, Simone Carol, para mim somente Rocqueira, que mora na super metrópole, completou quarenta anos de vida em outubro e festejou a data com uma balada. Catei o namorado e fomos juntos dividir com ela esse momento. Lelé, nosso xodó de longa data, que divide o AP com Rocqueira e muitas histórias conosco, já estava arquitetando as comemorações desde o início do ano. A festa foi ótima, embalada por uma banda que colocou todo mundo para dançar. A aniversariante reuniu em torno de 60 pessoas. Como diz ela, todas queridas, especiais. Não tenho dúvidas da recíproca do sentimento de quem lá estava por ela. Alguns, como eu, saíram de longe, da Bahia, de Belém, do Rio, especialmente para o evento. Não é para menos, Rocqueira é uma dessas pessoas que não passa despercebida por quem cruza o seu caminho. Aquela figura que ama demais, odeia demais, se é para rir, morre de rir, se é para chorar, espero que saiba nadar. Segundo ela, tem múltiplas personalidades. Quando doce e meiga, quer dizer, "doce e meiga" ela nunca é. Corrigindo, quando calma, paciente e mais cordata, é Simone. Quando "sobe nas tamancas", é Carol. Quando equilibrada, é Simone Carol.

Seja como for, nos conhecemos na escola quando tinha 15 anos. Ela não chegava a ter dois anos a mais, mas estava anos luz na minha frente. Era descolada, namoradeira, atleta de destaque e extremamente popular. Eu não era exatamente uma completa idiota; já era falante, extrovertida, de muitos amigos, mas aparentemente não tínhamos muito em comum. Mesmo assim, a empatia foi instantânea. Em pouco tempo nos tornamos parceiras no estudo (eu estudava e ela colava), nos esportes (ela jogava e eu torcia), nas baladas, viagens e projetos. Quando chegou o vestibular, coube a mim a responsabilidade de definir seu destino profissional. Escolhi seu curso superior, e acho que me saí bem, até melhor do que na minha própria escolha. O tempo passou e, em alguns momentos, foi padrasto com minha amiga. Mas o grande lance é justamente esse: dos limões que caíram em seu colo, ela soube espremer e fazer uma limonada, nem sempre doce. Hoje, ela vive um delicioso momento profissional e pessoal. Nada caiu do céu, foi construído pedra por pedra, com alegria, lágrimas, questionamentos, parcerias e muita determinação. Ela tinha mesmo razões para comemorar.

Voltando à festa, tivemos lá U2, Skank, Lulu Santos, Jota Quest, Paralamas e muitos outros. Começamos dançando em torno das mesas, mas em pouco tempo estávamos no gargarejo, pulando como "sapos na frigideira". Considerando a faixa etária dos convidados, ao pularmos, quase tudo em nossa anatomia pulava junto. Paula, nossa coligada, também de Belém, muito "presepeira" como sempre, lançou uma dança apropriada para situação: quando pulava, segurava os peitos, cada um com uma mão. Rapidamente, toda a mulherada aderiu à inovação e ficou bonito de ver, um grupo considerável de mulheres na beira do palco, cantando, pulando e segurando os peitos. De repente, quando olhamos, estava meu namorado também saltitando no salão com as mãos firmemente agarradas aos peitos. Paula se aproximou e explicando o porque de sua dança, disse: "é porque eu estou menstruada!". Ele, sem perder tempo, respondeu: "eu tambémmmm!!!!" Foi tudo muito divertido e Rocqueira, sem beber nada, estava embriagada de felicidade.

Dois anos atrás, Luana, sua irmã, também completou quarenta anos, e também com uma festa maravilhosa. O agito foi em Belém, ao som de "Acorda Alice", uma banda especializada em tocar rock nacional dos anos 80. Na mesma época, uma outra amiga nossa, uma mulher bonita, cheia de saúde, com uma família aparentemente estruturada e um emprego invejável, chegava aos seus quarenta anos, e passou o período a base de antidepressivos, para segurar a onda. É...poucos sabem decifrar os mistérios da vida, ou mesmo sem decifrá-los, sabem fazer do tempo, das venturas e desventuras parceiros e aliados. Que Deus me permita desfrutar sempre da companhia dessas pessoas e da sabedoria que elas derramam pelo caminho.

O Cone


"Que cone?" Essa pergunta, aparentemente inocente, despretensiosa, mudou todo o curso de nossa noite. Ela, Paula, poderia ter dito: "Claro! O cone, eu vou pegar." Ou talvez: "O cone? Sem problemas, eu devolvo!" Mas não, ela tinha que dizer :"que cone?". Bem, o que esperar de uma louca? Loucuras, é claro! Melhor assim, nosso passeio foi bem mais emocionante a partir de então.
Era só mais uma noite, como outra qualquer, de um fim de semana em Belém. No carro estavam Paula (22 anos) dirigindo, Suzane (22) no banco do carona, Mônica (21) e eu (20) no banco de trás. Organizávamos uma festa no sítio do amigo Fernando, mais uma de nossas inesquecíveis festas. De tempos em tempos programávamos uma, em sítios ou em casas na orla de Mosqueiro, balneário numa ilha fluvial do Pará. Não fazíamos esforço para divulgar. As baladas eram tão boas, que o boca-a-boca encarregava-se de promover, aí cada um trazia alguma coisa, contribuía de algum jeito, e a farra ia até o sol raiar. Como aconteciam em lugares afastados, grande parte da turma dormia no local, jogada onde desse. Uma característica era comum a quase todos esses eventos: ao terminar, o ambiente estava completamente devastado, algo semelhante aos efeitos do "Katrina". Ouve uma vez que, sem querer, tocamos fogo no muro da casa. Entre mortos e feridos, salvaram-se todos, mas acho que o dono da casa não considerou o desfecho exatamente um "final feliz".
Voltando à nossa noite, no carro conversávamos sobre uma maneira de facilitar a localização da entrada do sítio, que não era muito visível, quando vimos na rua um desvio sinalizado com vários cones. Fala sério, que falta iria fazer um conezinho entre tantos. Paramos e Paula e Suzane desceram, uma abriu a mala e a outra jogou o cone dentro. Ao entrarem no carro, ouvimos: "piiiiiiiiiii". Era o apito de um guardinha que estava por perto, apreciando a cena.
Jovem, simpático e sorridente, o rapaz, vendo quatro garotas sozinhas, chegou cheio de graça junto do carro e abaixou-se na janela do motorista, onde estava Paula. A partir daí o diálogo foi surreal. O militar, "tirando a maior onda", falou:
- Oi meninas! Será que dava para vocês devolverem o cone?
Paula: - Que cone?
Ele: - O cone que vocês acabaram de pegar.
Paula: - Cone? Eu não peguei cone nenhum. Do quê você está falando?
Ele: - Espera aí! Eu estava ali do outro lado e vi tudo. É o cone que está no porta-malas.
Paula, tirando uma de indignada: - Você está me chamando de ladra?

Eu estava achando aquele papo muito engraçado. Suzane, como habitual, olhava tudo por cima, como se não tivesse nada a ver com ela. Mônica mexia-se pra lá e pra cá, agoniada, preocupada e murmurando: "devolve esse cone". Mas a conversa prolongou-se e Paula não arredou o pé da postura de moral ilibada que adotou. Ele tinha imaginado tudo aquilo e ela estava ofendidíssima. Claro, diante da insistência em negar, em chamar ele de doido e quase que exigir um pedido formal de desculpa, o rapaz começou a  mudar o tom da conversa. Já não pedia mais nada, ele exigia, mas não surtiu o menor efeito com minha amiga tresloucada. A artista continuava irredutível; já com o apoio inigualavelmente cínico de Suzane. Eu ria, ria muito, e Mônica arrancava os cabelos, beirando um ataque histérico. Foi quando, para nossa falta de sorte, passou pelo local uma viatura da polícia militar, e o guardinha pediu reforço para conter quatro perigosas meliantes.
O oficial desceu e educadamente pediu o cone. Paula, fingindo estar descontrolada, esbravejou que não tinha cone algum e que aquele homem estava a ofendendo, chamando-a de ladra. A discussão, já envolvendo todos, prolongou-se e esquentou um tanto. Diante do impasse, o tenente exigiu que ela abrisse o porta-malas para mostrar, então, que o cone não estava lá. Paula não hesitou: abriu a porta carro e saiu determinada em direção ao fundo do veículo, com uma pequena distância das "autoridades". Chegando ao porta-malas, abriu-o totalmente, enquanto eles aproximavam-se. No exato momento que iam olhar, ela bateu a porta com uma senhora porrada e gritou: "Viu? Eu disse que não tinha cone nenhum!". Os caras enlouqueceram. O oficial pegou-a pelo braço firmemente e falou: abre esse porta-malas agora, que eu não estou brincando. Ela abriu e, claro, o cone estava lá.
Diante dos fatos, o quê fazer? Poderíamos dizer que estávamos sendo filmados e que tudo não passava de uma pegadinha; ou talvez, que éramos alunas de teatro e que aquilo era um laboratório, uma performance. Na hora não pintou. Não tinha o quê dizer; não havia defesa. Vamos todos para delegacia. Paula, sem perder o rebolado, voltou para a direção do carro e o tenente foi para o carona, mandando que Suzane afastasse para o meio para ele sentar na ponta. Mas não existia acento no meio. Suzane, "malaca", com toda a tranqüilidade, enquanto discretamente cutucava Paula, argumentou docemente com o militar: "Calma! Eu passo para trás e o senhor vai no meu lugar." Foi só o tempo dele colocar as duas pernas para fora e ficar de pé.
"Velozes e Furiosos" perdia fácil para nossa arrancada cinematográfica, com um solo de pneus para ser ouvido na outra quadra. Ele, coitado, ainda tentou correr segurando na porta do carro, mas não deu. Fomos embora em alta velocidade, seguidas pela viatura. Avança sinal, vira daqui, estica dali, e os homens da lei continuavam atrás. Dentro do carro, apesar da tensão, nos divertíamos um tanto, entre muitos gritos e alguns comentários de Mônica, do tipo: "eu acho que isso não vai dar certo!" Em determinado momento, o Monza de Paula, que corria até bem, conseguiu abrir uma certa distância. Viramos à esquerda e, logo depois da curva, vislumbramos a entrada estreita de uma vila. Paula embicou com tudo, vila a dentro, desligou o carro, apagou todas as luzes, e ficamos ali, abaixadas, mudas, esperando. Logo depois enxergamos de longe a viatura passar direto, voando.
Não tenho idéia do tempo que aguardamos, acho que em torno de vinte minutos. Considerando que estávamos nas proximidades do JB - um barzinho das antigas e um dos nossos pontos de encontro -, deixamos o carro na vila e fomos correndo para o bar, nos escondendo em qualquer árvore ou poste a cada veículo que passava. Chegando lá, encontramos Mauricinho, Tonho, Fernando e outros. Depois de relatar a aventura - com alguns exageros - fomos andando para a casa da Suzane, uma quadra depois, enquanto Mauricinho buscava o carro.
No fim, tudo ficou bem. Foi nossa noite de "As Panteras", não a única, mas uma das mais engraçadas e emocionantes. Quando nos reencontramos, quase sempre nos lembramos da aventura, como brincadeiras deliciosas que não podem ser reeditadas, mas que, em seu tempo, foram bem aproveitadas.