terça-feira, 29 de setembro de 2009

E você, também vai dançar?



Então atire a primeira pedra quem nunca passou pela solitária experiência de, na beira de uma pista de dança, ao som de uma convidativa melodia, sentir por dentro todo o seu corpo e alma dançando enquanto externamente, estático, estampa um sorriso amarelo de "eu hoje estou cansado". Os motivos podem ser os mais variados. Absoluta falta de habilidade, paralisante timidez, desconcertante escassez de par ou, pior, "enraivante" constatação de que o objeto de seu desejo está muito bem acompanhado. Não importa, seja como for, é frustrante. Quase todo mundo tem uma história engraçada, "ou não", como diria o filósofo Caetano, para contar sobre suas aventuras na pista de dança ou na beira desta. Já ouvi algumas, mas tem uma, em especial, que me diverte mais.

Tenho um amigo e colega de trabalho sergipano que é conhecido na empresa como pé-de-valsa. Sempre impecavelmente bem vestido, com uma fala grave, pausada e em tom moderado, vive escondido atrás de uns óculos, mas quando se espalha no salão ninguém junta. Segundo ele, quando era jovem, ia às festas com os amigos e enquanto a música rolava ficavam todos parados, as meninas de um lado e os rapazes de outro. De vez em quando os garotos sorteavam um mártir, que com muita coragem e resignação atravessava o salão como quem vai para a guilhotina e arriscava convidar a dama, quase sempre levando um toco que o deixava desconsertado pelo resto da noite. Revoltados com tantos mal-tratos, os garotos articularam-se e bolaram um plano no mínimo maquiavélico. Elegiam a mais "patricinhas", as bem sebosas mesmo e, em revezamento, viravam uma sarna atrás da vítima até que ela, para se livrar daquela moléstia, topava dar a honra de uma dança para qualquer um que fosse. Então os outros se posicionavam nas proximidades. A dança começava e quando a coitada já estava mais relaxada, talvez até gostando, o seu algoz a segurava firmemente pelos dois braços afastando-a uns dois palmos e dizendo em alta voz: - Você peidou!!!! - Depois disso o descarado saía sem mais explicação deixando a garota petrificada no meio do nada. Foi mais ou menos nessa época que o mercado de trabalho para psicólogos e psicanalistas “bombou” em Aracajú. Muitas garotas conseguiram superar o trauma e levam uma vida normal. Mas outras, atualmente senhoras, deixam pomposas somas nos consultórios de psicanálise até os dias de hoje.

Não faz muito tempo que as aulas de Dança de Salão popularizaram-se como a redenção para as famigeradas timidez e falta de habilidade. A atividade alcançou a mídia, virou argumento de filmes, pano de fundo de novelas e, no Brasil, até competição em instrutivo programa domingueiro de variedades, onde o intrépido apresentador, conhecido pela sutileza que mataria de inveja qualquer rinoceronte, nos brinda com apresentações de famosos dançando variados ritmos, e não posso negar que me delicio com o quadro.
Quanto à telona, Fred Astaire já fazia babar gerações anteriores, e aquele sim, sabia o que fazia. Mais recentemente, outros superstars não tão hábeis no bailado, mas muito mais talentosos no sexy appeal, como Antonio Banderas e Richard Gere, protagonizaram fitas que também giravam em torno do tema. O filme estrelado por Gere em 2004, por exemplo, que foi traduzido como "Dança Comigo", foi um remake de um filme japonês homônimo, de 1996, e trata de um advogado de meia idade um tanto entediado que encontra na dança de salão um sopro de alegria para sua vida. A versão americana desenrola a trama em torno dos dramas pessoais do protagonista. Já a versão original, a japonesa, propõe um elemento a mais, tendo em vista que no contexto nipônico tem-se também o paradoxo entre a introspecção da cultura oriental e a natural exposição da dança. No mais, tem aquele jeitinho todo especial das produções japonesas, que conseguem dizer tudo sem precisar falar nada. Seja como for, nas duas versões, bem como no “Vem Dançar” de Banderas, a dança quebra tabus e une diferentes tribos.

Como todo mundo, também já estive algumas vezes paralisada na margem da pista, mas quase sempre, por pior que seja o resultado, prefiro me arriscar nos rodopios. Sendo do Pará, adorava jogar os cabelos pra lá e pra cá ao som da lambada de Beto Barbosa, isso sem contabilizar o carimbó, o brega, o tecnobrega e por aí vai. Para um olhar mais especializado devia parecer uma afronta à boa dança, mas quem liga? Além disso, a herança genética me empurra para o meio do salão. Meus pais não podem ouvir uma música com um pouco mais de dois metros quadrados de área disponível que levantam e saem girando abraçados. Nesse embalo, são parceiros de dança há mais de quarenta anos e conseguiram disseminar por toda a prole o gosto pela brincadeira.

De olho nas benesses físicas, psicológicas e sociais que a atividade pode promover, empresas investem nas aulas como programa de valorização dos recursos humanos, e o órgão que trabalho embarcou nessa também. Contratou um casal de professores que com extrema paciência nos ensinam os segredos dos primeiros passos. Fácil não é, mas é gostoso. Alguns têm mais ritmo, outros mais coordenação e outros, bem, tem vontade, pelo menos. Não acho que chegaremos a uma companhia de dança, mas tenho certeza que vamos nos divertir.

Na nossa turma tem um colega, aquele mesmo do "você peidou!", que adora tirar uma onda de Richard Gere em "Dança Comigo". Ele freqüenta as aulas no turno da noite e não perde uma oportunidade de mostrar seus talentos, mas não falou nada em casa para a mulher sobre o curso. Num dia desses, um canal aberto da TV exibiu o citado filme. Ele fez de tudo para dispersar a esposa, mas não conseguiu tirá-la da frente do televisor no horário marcado. Enquanto o filme ia se desenrolando ele puxava outros assuntos, mas a patroa parecia hipnotizada pela fita e enquanto assistia, comentava:
- Mas olha o papelão que esse homem está fazendo, dançando por aí escondido da mulher e da família. Ah se fosse comigo!
Ele, cada vez mais encolhido na poltrona, tentava convencê-la: - Veja bem, ele não está fazendo nada de mais.    
Não tenho dúvidas que a atividade proporciona muitas coisas salutares, que vão além de uma boa oportunidade de exercitar o jogo da sedução ou dar um “zig” inocente na mulher. Fisicamente favorece o equilíbrio, a coordenação, o ritmo e até a queima de algumas calorias. Contudo, acredito que os maiores benefícios são relativos à autoestima. Numa sala espelhada você se vê mais, melhora uma postura aqui, dá um jeitinho no cabelo ali, observa seu movimento, sua silhueta, se conhece melhor, se aprecia. De modo geral, com espelhos ou não, temos a oportunidade de vivenciar um conjunto de situações que nos torna mais íntimos com nós mesmos. São detalhes, às vezes coisas que passam despercebidas, mas que ajudam a transpor o muro da timidez e fortalecer a autoconfiança. Paralelamente, num movimento antagônico ao da percepção de si mesmo, também faz o favor de nos expor, com direito a alguns deslizes, propiciando uma descontraída integração com os demais.

Dançar sincronizado com vasto repertório de passos, dançar o feijão com arroz levando umas pisadas aqui e ali. Dançar rápido, dançar lento, dançar para dar show, dançar para consumo próprio, acompanhado ou desacompanhado. Não importa muito, o importante é dançar para se divertir, para ousar, para transpor, para se permitir. Ei, e quanto a você que está aí lendo muito bem acomodado nesta cadeira, também vai dançar?

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

O Negro Gato


"Eu sou um negro gato de arrepiar

Essa minha história é mesmo de amargar
Só mesmo de um telhado, aos outros desacato
Eu sou um negro gato
Eu sou um negro gato".

Lá ia ele cantando. Na verdade a afinidade ia além do gosto pela melodia. Um negro gato era exatamente o que ele era: um bichano de pêlo curto e negro, estatura mediana para a espécie e uma soberba em nada compatível com a realidade. Falador, articulador e muito hábil no network , há algum tempo era considerado como um procurador dos interesses da comunidade “miante” do bairro, apesar de estar longe de ser uma unanimidade. Recentemente havia tomado para si a responsabilidade sobre a reforma do "beco da PGE". Nada a ver com a prestação de um serviço comunitário ou algo semelhante, ele pensava no upgrade que isso poderia render em seu status. Assim, tornou-se o maior militante da causa. 


O beco da PGE era o mais freqüentado ponto de encontro da turma do bairro. Um local para altos conchavos, cantoria, por o papo em dia e conhecer quem de novo pintava no meio da gataiada. Ficou conhecido como beco da PGE por conta de Mafalda, uma gata malandra, típica vira-lata, que andava por aqueles arredores em épocas passadas. Ela costumava dar golpes nos colegas, além de provocar a ira dos humanos, roubando quitutes deixados a vista por qualquer janela entre aberta. Certa vez, Francesco, um cozinheiro italiano de uma cantina do beco, conhecido por sua pouca paciência com os bichanos, deixou uma almôndega de isca sobre o balcão da cozinha, enquanto fervia um caldeirão de água. Quando Mafalda apareceu, não deu outra, despejou sobre ela a água fervente que, por sorte, pegou de banda. Desta vez não teve malandragem certa, Mafalda ficou “cheia de cheios e vazios”, parcialmente pelada. A bicharada, que não engolia muito a senhorita, não perdoou, e batizou o beco: "beco da Pobre Gata Escaldada", que mais tarde foi abreviado para "beco da PGE".

A empreitada da reforma era realmente grande. O beco precisava de tudo: reorganização do lay-out dos latões de lixo, penumbra adequada, isolamento acústico para possibilitar as serestas até altas horas e por aí vai. O Negro Gato contava com algumas parcerias. Tinha Tássio, um gatinho mestiço, rechonchudo, muito boa praça, que fazia o meio de campo com a comunidade, já que o Negro Gato não contava com a simpatia da galera. Os dois juntos lembravam Manda-Chuva e Batatinha, um sempre mandando e o outro sempre obedecendo, mesmo que a sabedoria notadamente não residisse na fonte do comando. Contudo, sua maior aliada era Sandra Espatódia, uma gata refinada, quase legítima angorá que, por qualquer contra-tempo, descia do salto e armava um barraco. Diziam as más línguas que ela tinha vivido um romance tórrido com o Negro Gato, que acabou com bate-boca e pancadaria de fundo passional, deixando o Negro Gato em recesso para reabilitação física durante algum tempo. Verdade ou não, o fato era que ele demonstrava um certo medo da dona. Apesar do grande interesse e empenho do trio, nenhum deles entendia nada do ofício. Tássio, bem relacionado, propôs que pedissem ajuda, e foi ele mesmo que sugeriu o nome: - Por que não falamos com Anita?

Anita era uma gata tímida, moradora da rua de cima, que nada investia em marketing pessoal, mas reconhecida pela extrema competência na área. Entre outras coisas, foi a mentora intelectual da reorganização do lay-out do "Beco das Flores", a projetista da reforma da "Esquina da Pata Suja" e a principal responsável pela revitalização da "Baixa do Corre do Tamborim", com o trabalho premiado pela UNICAT e destaque na revista Felino's News.

A idéia foi prontamente aceita, apesar das desconfianças de Sandra Espatódia. Tássio se incumbiu de agendar uma reunião. No dia marcado, lá estavam os três esperando quando surgiu Anita do outro lado da rua, com os sedosos pêlos brancos no balanço da leve brisa que soprava. Aquilo para o Negro Gato foi a visão do paraíso, seu queixo caiu alguns centímetros e foi impossível evitar a baba. Era como se tudo em volta estivesse congelado e só existisse Anita, atravessando a rua em movimentos lentos e graciosos. Acordando do transe, se recompôs rapidamente, reorganizou a postura, estufou o peito e partiu em direção à visitante, cheio de clichês, patas e dedos. Aquilo de cara assustou Anita que, apesar de simples, tinha o comportamento de uma "aristogata".

As reuniões foram sucedendo-se com muitas indefinições e algumas contribuições da comunidade. Mais latas de lixo ou menos latas? Ia ser prevista a circulação de roedores, com algum entretenimento relacionado, tipo pegue-e-pague, ou não? Já se falava até em erguer um monumento à Mafalda, a "Pobre Gata Escaldada". Neste ínterim, o Negro Gato, cada dia mais encantado, não perdia qualquer oportunidade de roçar os pêlos em Anita e ronronar próximo aos seus ouvidos. Ela, com total asco, fugia "como o diabo foge da cruz", mas a situação já estava chegando num ponto insustentável, agravada ainda mais pelas escancaradas demonstrações de ciúmes de Sandra Espatódia. O Negro Gato sacava tudo e com habilidade atiçava a discórdia que massageava seu ego doentio. Tássio, com excelente humor e senso de oportunidade, amenizava o clima e o trabalho ia se desenrolando. Aparentemente a situação parecia equilibrada, mas Sandra Espatódia era ardilosa e, enquanto forjava uma atitude mais calma, armava um plano para atingir sua arqui-rival.

Anita, apesar de circular livremente pelas ruas, era a queridinha de uma madame moradora de um dos mais tradicionais edifícios do bairro. A senhora mantinha em seu luxuoso apartamento uma almofada confortável de penas de ganso, sempre limpinha, para o deleite de sua pequena. Por conta disso, Anita carregava no pescoço uma medalhinha de identificação, o que liberava sua passagem nas dependências do prédio e lhe dava um ar ainda mais distinto. Contudo, já haviam alguns dias que a tal medalha andava perdida, e isso deixava a gata angustiada.

Quando chegou o primeiro dia de lua cheia do mês, uma turma de gatos não identificados armou na frente da residência da madame uma algazarra sem precedentes. A cantoria e bateção de latas perdurou até altas horas da madrugada. A viatura da polícia esteve no local duas vezes, tentando dispersar o movimento, sem obter sucesso. Ao amanhecer o cenário era catastrófico. As latas de lixo estavam reviradas e havia resíduos de natureza diversa espalhados pela rua, passeio e até entrada da portaria. No meio de tudo, foi achada a medalhinha de Anita. A sentença do síndico e conselheiros do prédio foi imediata: Anita estava terminantemente expulsa daquela Maison. Enfim o mistério que tanto lhe preocupava foi esclarecido, sua medalha desaparecida estava com Sandra Espatódia, que soube usá-la muito bem. Desolada, a gatinha saiu meio sem rumo, cantarolando em murmúrios melancólicos:

"De manhã eu voltei pra casa
Fui barrada na portaria
Sem filé e sem almofada
Por causa da cantoria"

Ainda fragilizada, ela levantou a cabeça e tocou a vida, mergulhando fundo na reforma do beco da PGE. Conciliou interesses, harmonizou propostas e fez questão de cuidar sozinha do tão esperado monumento à Mafalda. No dia da inauguração estavam todos lá: a gataiada do bairro, os amigos, a imprensa e até algumas autoridades. O beco estava irreconhecível, sofisticadamente lindo e original. O Negro Gato não podia conter-se de tanto orgulho. Todos o congratulavam apesar de terem absoluta convicção de que a mente pensante por trás de tudo era a de Anita. A inauguração do monumento à Mafalda, que estava coberto por um manto encarnado, era o momento mais aguardado da festa, e seria uma surpresa para todos, já que Anita providenciou tudo sozinha. Na hora marcada, o Negro Gato pegou o microfone e, após um enfadonho discurso de auto-promoção, anunciou com toda a pompa e circunstância a homenagem à gata que deu o nome ao beco, puxando com um movimento brusco o manto que cobria a escultura. Foi quando ouviu-se um longo "oooohhhhh!!!!!", seguido de risos e muitas gargalhadas.

Para o espanto geral, a escultura retratava com impressionante perfeição a imagem do Negro Gato vestido com uma ceroula, na fisionomia uma expressão de dor e medo, encolhido numa postura ultrajante para o gênero masculino, tentando se proteger de Sandra Espatódia. Esta, na obra de arte, estava em posição ameaçadora, com os olhos explodindo em ira, trajando um babydoll dois números abaixo do seu, com os pêlos enrolados em bobs e segurando um rolo de macarrão, que usava para espancar o Negro Gato. A imagem era grotescamente real. Aproveitando o burburinho e galhofada que a surpresa gerou, Anita saiu à francesa com um doce gostinho de vingança na boca, enquanto ensaiava timidamente alguns passos e cantava:

"Nós gatos já nascemos pobres
Porém, já nascemos livres
Senhor, senhora, senhorio
Felinos, não reconhecerás"

O beco da PGE continua um sucesso incontestável, divertido, polêmico e formador de opinião. Dizem até que foi em suas noitadas que foram lançados pelo menos dois dos principais candidatos ao mais alto cargo do Estado. Contudo, a sigla do aclamado beco, com todo respeito à memória de Mafalda, sua musa inspiradora, tem novo significado em homenagem a suas mais recentes celebridades, sendo hoje, então, "o beco do Pobre Gato Espancado"

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Atividade Alternativa


Recentemente, num curso de pós, a professora de "Sistemas das Organizações" foi categórica em afirmar que devemos ter uma atividade alternativa à nossa atividade oficial, e que, de preferência, esta atividade deve ter pouco ou nada a ver com nossa profissão. Segundo ela, o mercado de trabalho hoje é muito dinâmico e ninguém está seguro onde está, podendo vir a ter que se adaptar à funções pouco afins com as que exerce atualmente. Além disso, atividades diferentes oxigenam nosso cérebro e sempre abrem novas possibilidades.

O grande barato do estudo continuado é justamente esse, permanecer disposto a sacudir nossas idéias e paradigmas, mas esse toque não foi exatamente uma revelação para mim. Profissionalmente abracei a carreira de arquiteta, apesar de hoje muito pouco arquitetar e exercer mais uma função de gestora de projetos da área. Mas como alternativa profissional nunca almejei paisagismo, design, decoração ou qualquer coisa que passasse perto da arquitetura. Na verdade, me entreguei a delírios muito diferentes e nada ortodoxos. Sonho ser patinadora de supermercado, aquele pessoal que fica agilizando o vai e vem de produtos pelos corredores da loja. Imaginem, ser paga para passar o dia inteirinho deslizando sobre patins num piso lisinho como uma peruca depois da chapinha, desviando de uma prateleira aqui, de um cliente ali. É a glória! Também considero com carinho a idéia de ser bailarina de banda de música de grande sucesso. Tenho uma certa intimidade com a dança e, sobretudo, adoro o ofício. Então, nada melhor do que unir o agradável ao rentável. Acordar pela manhã com a dura tarefa de ter que dançar por horas ensaiando, concluindo o dia com uma apresentação para alguns milhares de pessoas gritando enlouquecidas pelo show. Se não bastasse tudo isso, ainda ter que viajar em turnês pelo país e até pelo exterior. Parece um sonho. Por mais bizarro que possa parecer, quando entro neste transe só me vem à cabeça a banda "Calypso" com seu frenético tecnobrega. Cada um tem o sonho que merece.

Contudo, os fatos têm revelado que não sou a única acalentar o sonho de atividades desconexas com a oficial. Vejam o caso daquela professorinha de Salvador, que durante o dia dedicava-se candidamente ao magistério para a primeira infância em uma escola particular da capital baiana, e à noite, ao apagar das luzes, se liberava ao som do pagode "todo enfiado" na picante casa de shows Malagueta. Reconheço que seus remelexos estavam longe de ser um inocente ofício, mas nesta história não consegui ainda identificar o que é mais deplorável. Se é a própria coreografia ou se é a nojenta hipocrisia da mídia e da sociedade, que ora festeja o estilo musical e suas coreografias vulgares e ora, sedentos de notícias sensacionalistas e seus respectivos "Judas", aclamam a mulher como inimiga pública número um, num uníssono "joga pedra na Gení", adormecendo no esquecimento escândalos políticos muito mais ofensivos para a moral e os bons costumes. Opiniões a parte, a gente tem que reconhecer: a moça tinha um certo talento para o show business. Com a celebridade alcançada depois do post no "You Tube" e as mais de cem mil visitas, acho que a garota considerou a possibilidade de tornar esta a sua atividade principal, fazendo a extravagância de atuar paralelamente, na surdina, quem sabe, como docente do ensino infantil.

Existem, contudo, aquelas atividades que não são programadas, nunca foram objeto de desejo e não tem nenhum glamour, mas quando menos se espera o talento bate a porta de uma forma tão contundente que fica difícil ignorar. Assim aconteceu com uma amiga. Ela estava indo muito bem na sua vida profissional no serviço público, com o trabalho reconhecido e grandes perspectivas de crescimento. Dinheiro também não era o problema, e a vidinha seguia seu curso de forma muito tranqüila, beirando o enfadonho. Em um belo dia, quando chegava para a labuta, se deparou com alguns colegas de trabalho cumprimentando outro colega. Alegre e solícita como sempre, de longe veio pulando e cantando:.
- "Parabéns pra você, nesta data querida, muitas felicidades, muitos anos de vida".
Quando alcançou nosso amigo, pulou sobre ele com um forte abraço e alguns beijos. Não contente, sem dar tempo para o cara sequer respirar, emendou:

- "A chuva cai, a rua inunda, ô fulano eu vou comer seu bolo. É vatapá, é carurú, ô fulano eu vou comer o seu bolo."

Quando acabou, ofegante com tanta felicidade e diante dos olhares estupefatos dos demais, disse:

- Eu não sabia que era o seu aniversário!

- Não é! - Respondeu ele, continuando: - foi meu pai que morreu.

Apesar do absurdo da situação, o mico quebrou o clima e relaxou inclusive nosso colega em luto. A história correu os corredores da empresa e, tratando-se de uma pessoa tão sensível e inteligente, pensamos todos que ela havia, a duras penas, aprendido a lição. Como a gente se engana com as pessoas. Poucos meses depois, novamente quando chegava para o trabalho, ao abrir a porta viu duas colegas de trabalho abraçadas. Sem pensar duas vezes, já saiu gritando:

- Amiiiiiga, não sabia que era seu aniversário. "É big, é big, é big, é big, é big! É hora, é hora, é hora, é hora, é hora! Ah! Tchim! Bum! Êêêêêê!!!!!!!"

A louca foi tão segura nas suas afirmações que acabou confundindo todo mundo. A que estava sendo abraçada virou para a que estava abraçando e perguntou:

- É seu aniversário?

- Não! - Respondeu ela. - É seu?

- Não! 

Foi só então que a desvairada resolveu perguntar: - Então qual é o motivo de tanto abraço?

A abraçada respondeu: - Foi meu irmão que morreu!
A trapalhada foi tanta que a história chegou a mim por nossa colega que havia perdido o ente querido, confessando que, apesar de tudo, também deu suas risadas.
Diante da repercussão dos "causos" e os consecutivos comentários e incentivos, minha amiga começou a vislumbrar a possibilidade de lucrar com seus talentos naturais. Não demorou e apareceu logo uma candidata à sócia que, com talentos semelhantes, costuma atrapalhar-se nos cumprimentos das cerimônias fúnebres, distribuindo parabéns para todos os parentes do defunto. As duas abriram uma empresa que tem a finalidade de animação de velórios, enterros, missas de sétimo dia, cerimônias de cremação e semelhantes. Os negócios vão de vento em pôpa e as empresárias já estão estudando a possibilidade de abrir franquias com a venda do know-how. São realmente garotas empreendedoras. Admiro a criatividade e atitude, mas peço a Deus não ter a oportunidade de prestigiar seus serviços tão cedo.