Então atire a primeira
pedra quem nunca passou pela solitária experiência de, na beira de uma pista de
dança, ao som de uma convidativa melodia, sentir por dentro todo o seu corpo e
alma dançando enquanto externamente, estático, estampa um sorriso amarelo de
"eu hoje estou cansado". Os motivos podem ser os mais variados.
Absoluta falta de habilidade, paralisante timidez, desconcertante escassez de
par ou, pior, "enraivante" constatação de que o objeto de seu desejo
está muito bem acompanhado. Não importa, seja como for, é frustrante. Quase
todo mundo tem uma história engraçada, "ou não", como diria o
filósofo Caetano, para contar sobre suas aventuras na pista de dança ou na
beira desta. Já ouvi algumas, mas tem uma, em especial, que me diverte mais.
Tenho um amigo e colega
de trabalho sergipano que é conhecido na empresa como pé-de-valsa. Sempre
impecavelmente bem vestido, com uma fala grave, pausada e em tom moderado, vive
escondido atrás de uns óculos, mas quando se espalha no salão ninguém junta.
Segundo ele, quando era jovem, ia às festas com os amigos e enquanto a música
rolava ficavam todos parados, as meninas de um lado e os rapazes de outro. De
vez em quando os garotos sorteavam um mártir, que com muita coragem e resignação
atravessava o salão como quem vai para a guilhotina e arriscava convidar a
dama, quase sempre levando um toco que o deixava desconsertado pelo resto da
noite. Revoltados com tantos mal-tratos, os garotos articularam-se e bolaram um
plano no mínimo maquiavélico. Elegiam a mais "patricinhas", as bem
sebosas mesmo e, em revezamento, viravam uma sarna atrás da vítima até que ela,
para se livrar daquela moléstia, topava dar a honra de uma dança para qualquer
um que fosse. Então os outros se posicionavam nas proximidades. A dança
começava e quando a coitada já estava mais relaxada, talvez até gostando, o seu
algoz a segurava firmemente pelos dois braços afastando-a uns dois palmos e
dizendo em alta voz: - Você peidou!!!! - Depois disso o descarado saía sem mais
explicação deixando a garota petrificada no meio do nada. Foi mais ou menos
nessa época que o mercado de trabalho para psicólogos e psicanalistas “bombou”
em Aracajú. Muitas garotas conseguiram superar o trauma e levam uma vida
normal. Mas outras, atualmente senhoras, deixam pomposas somas nos consultórios
de psicanálise até os dias de hoje.
Não
faz muito tempo que as aulas de Dança de Salão popularizaram-se como a redenção
para as famigeradas timidez e falta de habilidade. A atividade alcançou a
mídia, virou argumento de filmes, pano de fundo de novelas e, no Brasil, até
competição em instrutivo programa domingueiro de variedades, onde o intrépido
apresentador, conhecido pela sutileza que mataria de inveja qualquer
rinoceronte, nos brinda com apresentações de famosos dançando variados ritmos,
e não posso negar que me delicio com o quadro.
Quanto
à telona, Fred Astaire já fazia babar gerações anteriores, e aquele sim, sabia
o que fazia. Mais recentemente, outros superstars não tão hábeis no
bailado, mas muito mais talentosos no sexy appeal, como Antonio
Banderas e Richard Gere, protagonizaram fitas que também giravam em torno do
tema. O filme estrelado por Gere em 2004, por exemplo, que foi traduzido como
"Dança Comigo", foi um remake de um filme japonês homônimo,
de 1996, e trata de um advogado de meia idade um tanto entediado que encontra
na dança de salão um sopro de alegria para sua vida. A versão americana
desenrola a trama em torno dos dramas pessoais do protagonista. Já a versão
original, a japonesa, propõe um elemento a mais, tendo em vista que no contexto
nipônico tem-se também o paradoxo entre a introspecção da cultura oriental e a
natural exposição da dança. No mais, tem aquele jeitinho todo especial das
produções japonesas, que conseguem dizer tudo sem precisar falar nada. Seja
como for, nas duas versões, bem como no “Vem Dançar” de Banderas, a dança
quebra tabus e une diferentes tribos.
Como todo mundo, também
já estive algumas vezes paralisada na margem da pista, mas quase sempre, por
pior que seja o resultado, prefiro me arriscar nos rodopios. Sendo do Pará,
adorava jogar os cabelos pra lá e pra cá ao som da lambada de Beto Barbosa,
isso sem contabilizar o carimbó, o brega, o tecnobrega e por aí vai. Para um
olhar mais especializado devia parecer uma afronta à boa dança, mas quem liga?
Além disso, a herança genética me empurra para o meio do salão. Meus pais não
podem ouvir uma música com um pouco mais de dois metros quadrados de área
disponível que levantam e saem girando abraçados. Nesse embalo, são parceiros
de dança há mais de quarenta anos e conseguiram disseminar por toda a prole o
gosto pela brincadeira.
De olho nas benesses
físicas, psicológicas e sociais que a atividade pode promover, empresas
investem nas aulas como programa de valorização dos recursos humanos, e o órgão
que trabalho embarcou nessa também. Contratou um casal de professores que com
extrema paciência nos ensinam os segredos dos primeiros passos. Fácil não é,
mas é gostoso. Alguns têm mais ritmo, outros mais coordenação e outros, bem,
tem vontade, pelo menos. Não acho que chegaremos a uma companhia de dança, mas
tenho certeza que vamos nos divertir.
Na nossa turma tem um
colega, aquele mesmo do "você peidou!", que adora tirar uma onda de
Richard Gere em "Dança Comigo". Ele freqüenta as aulas no turno da
noite e não perde uma oportunidade de mostrar seus talentos, mas não falou nada
em casa para a mulher sobre o curso. Num dia desses, um canal aberto da TV
exibiu o citado filme. Ele fez de tudo para dispersar a esposa, mas não
conseguiu tirá-la da frente do televisor no horário marcado. Enquanto o filme
ia se desenrolando ele puxava outros assuntos, mas a patroa parecia hipnotizada
pela fita e enquanto assistia, comentava:
- Mas olha o papelão
que esse homem está fazendo, dançando por aí escondido da mulher e da família.
Ah se fosse comigo!
Ele, cada vez mais
encolhido na poltrona, tentava convencê-la: - Veja bem, ele não está fazendo
nada de mais.
Não
tenho dúvidas que a atividade proporciona muitas coisas salutares, que vão além
de uma boa oportunidade de exercitar o jogo da sedução ou dar um “zig” inocente
na mulher. Fisicamente favorece o equilíbrio, a coordenação, o ritmo e até a
queima de algumas calorias. Contudo, acredito que os maiores benefícios são
relativos à autoestima. Numa sala espelhada você se vê mais, melhora uma
postura aqui, dá um jeitinho no cabelo ali, observa seu movimento, sua
silhueta, se conhece melhor, se aprecia. De modo geral, com espelhos ou não,
temos a oportunidade de vivenciar um conjunto de situações que nos torna mais
íntimos com nós mesmos. São detalhes, às vezes coisas que passam despercebidas,
mas que ajudam a transpor o muro da timidez e fortalecer a autoconfiança.
Paralelamente, num movimento antagônico ao da percepção de si mesmo, também faz
o favor de nos expor, com direito a alguns deslizes, propiciando uma
descontraída integração com os demais.
Dançar sincronizado com
vasto repertório de passos, dançar o feijão com arroz levando umas pisadas aqui
e ali. Dançar rápido, dançar lento, dançar para dar show, dançar para consumo
próprio, acompanhado ou desacompanhado. Não importa muito, o importante é
dançar para se divertir, para ousar, para transpor, para se permitir. Ei, e
quanto a você que está aí lendo muito bem acomodado nesta cadeira, também vai
dançar?