domingo, 20 de novembro de 2011

Pé na estrada de coração aberto

 Nesse fim de semana um amigo, que teve recentemente a oportunidade de viajar durante um mês pela Índia, me falou encantado sobre sua aventura. Não se esquivou de falar da pobreza, dos contrastes sociais, do caos urbano e dos pedintes. Sim, ele esteve lá e viu tudo isso. Mas a questão toda é essa: ele enxergou as pessoas, a cultura, o país, no sentido mais amplo que se pode conceder ao verbo "enxergar". Com doçura e generosidade, me falou da receptividade indiana, do convívio com a família onde esteve alojado, da espiritualidade que ameniza as adversidades e torna a vida mais leve. Ele estava tão feliz em seus relatos que se esqueceu de falar dos monumentos de Jaipur e do esplendor do Taj Mahal. Acho que visitou essas atrações turísticas, mas parece que não foi o que mais lhe valeu em suas caminhadas.

Há muito tempo que esse tipo de percepção, dom ou, talvez, somente bom senso, que alguns trazem em consigo e outros tantos viverão a vida inteira sem ter ideia do que seja, me desperta a atenção. Bom senso porque, no mínimo, mesmo que você tenha ganho de forma fabulosa toda a sua viagem num sorteio ou bingo, você está gastando nela um artigo que não se compra e que não volta atrás: o tempo. O seu precioso tempo. Sobre ele, só lhe cabe decidir se vai usá-lo bem ou mal, se vai se divertir ou se chatear, se vai crescer, expandir sua visão e horizontes ou se vai se entediar e só deixar o tempo passar. 

Talvez tenha atentado para isso em função do lugar de onde vim. Eu cresci no estado do Pará, cidade de Belém, considerada a metrópole da Amazônia, mas já estou há mais de dez anos morando longe do Estado. Minha origem geográfica quase sempre desperta muito interesse e curiosidade.  A vastidão de nosso país e as atraentes promoções turísticas para os destinos internacionais mais tradicionais, ou comerciais, deixam a Amazônia no fim da lista de "lugares a conhecer" de quase todas as pessoas, se é que ela consta na lista. Sendo assim, o norte do Brasil é um mistério para a grande maioria. As perguntas são as mais variadas, às vezes generalistas, algumas mais específicas e outras bem absurdas. Pessoalmente, tenho o maior prazer em falar de minha terra, mas devo confessar, não é para todo mundo. 

Belém é uma cidade sui generis que já completou trezentos e noventa e cinco anos de fundação. Uma aglomeração urbana às margens do rio Guamá e baía do Guajará. Quase uma península fluvial. Todos os dias desembarcam no cais do Ver-o-Peso as mais diversas iguarias trazidas de ilhas que rodeiam a capital, lugares que conservam a mata densa e exuberante. A metrópole tem uma história forte, com todos os ingredientes da colonização brasileira. Lutas sangrentas entre colonizadores e índios, missões religiosas, escravização africana e a cabanagem - uma das três maiores revoltas populares da história do país. Teve também os grandes ciclos de prosperidade, como o da borracha, que levou à cidade riqueza, cultura e um certo delírio de europeização, lhe conferindo no período o título de Paris n’América. O clima é quente e úmido; os paraenses são receptivos e muito dançantes; a arquitetura histórica é diversa e abundante; as frutas são exóticas; e a culinária, com influência indígena, é capaz de encantar qualquer gourmet. Resumindo, a história, a cultura e o patrimônio natural são enormemente ricos. Todos esses elementos estão ali, na cidade, impressos na paisagem urbana. Estão nas nuances dos tons de pele, no cheiro da comida, no movimento das águas, no frescor das sombras das mangueiras, mas, tem que se dispor a enxergar a cidade. Tem que cheirar, sentir, ouvir e ler nas entrelinhas o que não está explícito. Não é para qualquer um. Ah sim, claro! Ela tem um monte de problemas, não tenha dúvidas, e não os esconde. Belém transpira sua identidade, com qualidades e mazelas, para quem quer realmente conhecê-la. E para quem quer, pode crer, é um encontro especial.

Parece bairrista. Pode ser, mas essa mesma disposição me acompanha nas mais diversas trips. Claro, nem todas me comovem, por maior que seja meu esforço de respirar o lugar, mas com freqüência tenho boas coisas para contar, e não preciso nem ir muito longe pra isso. Um bom exemplo são minhas andadas pela Bahia. Em função do meu trabalho, às vezes preciso viajar pelo interior do estado, muito de carro. Em algumas situações são cidades com certo porte, em outras são lugares que escaparam de povoado. Por mais singela que seja a contribuição da excursão, quase sempre o saldo é positivo. Além disso, vamos combinar, que delícia são aquelas feirinhas de beira de estrada, com artesanato, frutas do local e especialidades que você só encontra com aquela qualidade e aquele preço ali, só ali. Sem falar, é claro, dos comerciantes, que tratam você como o evento do dia.

Uma viagem pode ter diferentes motivações. Pode ser planejada ou improvisada, ser um sonho acalentado há anos ou um árduo compromisso. Pode-se ir longe ou aqui do lado. Às vezes é uma fuga emocional, e sendo assim, pode não cumprir muito bem sua função. Pode transcorrer sem quaisquer sobressaltos ou ter imprevistos diplomáticos, dissabores de fuso, de clima, altitude, idioma, cultura. Seja como for, quase sempre é um ato voluntário e dispendioso, que pode ser melhor vivenciado se reduzirmos a bagagem. Não falo de malas, cada um sabe de suas necessidades. Falo da bagagem das idéias pré-concebidas, dum formato muito rígido do que esperamos encontrar e experimentar. Não dá para aventurar-se pelo mundo procurando em todos os lugares as nossas próprias projeções. A viagem pode até cumprir com louvor todos os propósitos pré-determinados, mas é muito bom estar livre de grilhões para flexibilizar, se necessário for, esses tais propósitos durante o trajeto, e permitir-se encantar com as surpresas que quase sempre nos esperam quando saímos de casa e colocamos o pé na estrada de coração aberto.

4 comentários:

Helena disse...

E como disse uma amiga queridíssima:
... é muito bom estar livre de grilhões para flexibilizar, se necessário for, esses tais propósitos durante o trajeto, e permitir-se encantar com as surpresas que quase sempre nos esperam quando saímos de casa e colocamos o pé na estrada de coração aberto.


BEIJOS
E se quiser almoçar sexta, eu topo!!!!!

panndora disse...

Helena,

Fiquei assim, assim, sem saber se publicava seu comentário, mas achei legal colocar.

Engraçado que quando lhe falei que tinha muito a ver com você, falei em relação a viagens. Na verdade, nem havia pensado nos últimos acontecimentos, mas acho que você tem toda a razão, tem tudo a ver também. Talvez quem consegue ter essa disposição em aventuras geográficas tem mais flexibilidade para tê-la em qualquer situação. Acho que a vida sempre terá boas surpresas para você. De qualquer forma, você faz muita falta.

Beijo grande.

Anônimo disse...

Viajar é um barato! Mas saber viajar e realmente se entregar - e se integrar - nesses momentos faz toda a diferença.
Não viajo muito ultimamente, mas não me queixo, muito pelo contrário.
Acho que estou aprendendo mais e mais a viajar na minha própria cidade. Isso mesmo: viajo sem sair de casa. E como minha casa é agradável de se curtir.

Grande beijo

Renato

panndora disse...

Ei maluco,

Cuidado com essa história de ficar "viajandão" em casa. Rsrsrs

Sempre apreciei muito sua forma de encarar as trips e, tenho que confessar, admiro a escolha dos roteiros também que,às vezes, são bem pouco ortodoxos. É mais ou menos sobre esse desprendimento ao qual me referi. Mas isso é exercício. Ainda fico como você.

Muita saudade,