terça-feira, 23 de outubro de 2007

O Cone


"Que cone?" Essa pergunta, aparentemente inocente, despretensiosa, mudou todo o curso de nossa noite. Ela, Paula, poderia ter dito: "Claro! O cone, eu vou pegar." Ou talvez: "O cone? Sem problemas, eu devolvo!" Mas não, ela tinha que dizer :"que cone?". Bem, o que esperar de uma louca? Loucuras, é claro! Melhor assim, nosso passeio foi bem mais emocionante a partir de então.
Era só mais uma noite, como outra qualquer, de um fim de semana em Belém. No carro estavam Paula (22 anos) dirigindo, Suzane (22) no banco do carona, Mônica (21) e eu (20) no banco de trás. Organizávamos uma festa no sítio do amigo Fernando, mais uma de nossas inesquecíveis festas. De tempos em tempos programávamos uma, em sítios ou em casas na orla de Mosqueiro, balneário numa ilha fluvial do Pará. Não fazíamos esforço para divulgar. As baladas eram tão boas, que o boca-a-boca encarregava-se de promover, aí cada um trazia alguma coisa, contribuía de algum jeito, e a farra ia até o sol raiar. Como aconteciam em lugares afastados, grande parte da turma dormia no local, jogada onde desse. Uma característica era comum a quase todos esses eventos: ao terminar, o ambiente estava completamente devastado, algo semelhante aos efeitos do "Katrina". Ouve uma vez que, sem querer, tocamos fogo no muro da casa. Entre mortos e feridos, salvaram-se todos, mas acho que o dono da casa não considerou o desfecho exatamente um "final feliz".
Voltando à nossa noite, no carro conversávamos sobre uma maneira de facilitar a localização da entrada do sítio, que não era muito visível, quando vimos na rua um desvio sinalizado com vários cones. Fala sério, que falta iria fazer um conezinho entre tantos. Paramos e Paula e Suzane desceram, uma abriu a mala e a outra jogou o cone dentro. Ao entrarem no carro, ouvimos: "piiiiiiiiiii". Era o apito de um guardinha que estava por perto, apreciando a cena.
Jovem, simpático e sorridente, o rapaz, vendo quatro garotas sozinhas, chegou cheio de graça junto do carro e abaixou-se na janela do motorista, onde estava Paula. A partir daí o diálogo foi surreal. O militar, "tirando a maior onda", falou:
- Oi meninas! Será que dava para vocês devolverem o cone?
Paula: - Que cone?
Ele: - O cone que vocês acabaram de pegar.
Paula: - Cone? Eu não peguei cone nenhum. Do quê você está falando?
Ele: - Espera aí! Eu estava ali do outro lado e vi tudo. É o cone que está no porta-malas.
Paula, tirando uma de indignada: - Você está me chamando de ladra?

Eu estava achando aquele papo muito engraçado. Suzane, como habitual, olhava tudo por cima, como se não tivesse nada a ver com ela. Mônica mexia-se pra lá e pra cá, agoniada, preocupada e murmurando: "devolve esse cone". Mas a conversa prolongou-se e Paula não arredou o pé da postura de moral ilibada que adotou. Ele tinha imaginado tudo aquilo e ela estava ofendidíssima. Claro, diante da insistência em negar, em chamar ele de doido e quase que exigir um pedido formal de desculpa, o rapaz começou a  mudar o tom da conversa. Já não pedia mais nada, ele exigia, mas não surtiu o menor efeito com minha amiga tresloucada. A artista continuava irredutível; já com o apoio inigualavelmente cínico de Suzane. Eu ria, ria muito, e Mônica arrancava os cabelos, beirando um ataque histérico. Foi quando, para nossa falta de sorte, passou pelo local uma viatura da polícia militar, e o guardinha pediu reforço para conter quatro perigosas meliantes.
O oficial desceu e educadamente pediu o cone. Paula, fingindo estar descontrolada, esbravejou que não tinha cone algum e que aquele homem estava a ofendendo, chamando-a de ladra. A discussão, já envolvendo todos, prolongou-se e esquentou um tanto. Diante do impasse, o tenente exigiu que ela abrisse o porta-malas para mostrar, então, que o cone não estava lá. Paula não hesitou: abriu a porta carro e saiu determinada em direção ao fundo do veículo, com uma pequena distância das "autoridades". Chegando ao porta-malas, abriu-o totalmente, enquanto eles aproximavam-se. No exato momento que iam olhar, ela bateu a porta com uma senhora porrada e gritou: "Viu? Eu disse que não tinha cone nenhum!". Os caras enlouqueceram. O oficial pegou-a pelo braço firmemente e falou: abre esse porta-malas agora, que eu não estou brincando. Ela abriu e, claro, o cone estava lá.
Diante dos fatos, o quê fazer? Poderíamos dizer que estávamos sendo filmados e que tudo não passava de uma pegadinha; ou talvez, que éramos alunas de teatro e que aquilo era um laboratório, uma performance. Na hora não pintou. Não tinha o quê dizer; não havia defesa. Vamos todos para delegacia. Paula, sem perder o rebolado, voltou para a direção do carro e o tenente foi para o carona, mandando que Suzane afastasse para o meio para ele sentar na ponta. Mas não existia acento no meio. Suzane, "malaca", com toda a tranqüilidade, enquanto discretamente cutucava Paula, argumentou docemente com o militar: "Calma! Eu passo para trás e o senhor vai no meu lugar." Foi só o tempo dele colocar as duas pernas para fora e ficar de pé.
"Velozes e Furiosos" perdia fácil para nossa arrancada cinematográfica, com um solo de pneus para ser ouvido na outra quadra. Ele, coitado, ainda tentou correr segurando na porta do carro, mas não deu. Fomos embora em alta velocidade, seguidas pela viatura. Avança sinal, vira daqui, estica dali, e os homens da lei continuavam atrás. Dentro do carro, apesar da tensão, nos divertíamos um tanto, entre muitos gritos e alguns comentários de Mônica, do tipo: "eu acho que isso não vai dar certo!" Em determinado momento, o Monza de Paula, que corria até bem, conseguiu abrir uma certa distância. Viramos à esquerda e, logo depois da curva, vislumbramos a entrada estreita de uma vila. Paula embicou com tudo, vila a dentro, desligou o carro, apagou todas as luzes, e ficamos ali, abaixadas, mudas, esperando. Logo depois enxergamos de longe a viatura passar direto, voando.
Não tenho idéia do tempo que aguardamos, acho que em torno de vinte minutos. Considerando que estávamos nas proximidades do JB - um barzinho das antigas e um dos nossos pontos de encontro -, deixamos o carro na vila e fomos correndo para o bar, nos escondendo em qualquer árvore ou poste a cada veículo que passava. Chegando lá, encontramos Mauricinho, Tonho, Fernando e outros. Depois de relatar a aventura - com alguns exageros - fomos andando para a casa da Suzane, uma quadra depois, enquanto Mauricinho buscava o carro.
No fim, tudo ficou bem. Foi nossa noite de "As Panteras", não a única, mas uma das mais engraçadas e emocionantes. Quando nos reencontramos, quase sempre nos lembramos da aventura, como brincadeiras deliciosas que não podem ser reeditadas, mas que, em seu tempo, foram bem aproveitadas.


2 comentários:

Anônimo disse...

Engraçado e perigoso!
Eu vivi uma historia tão maluca quanto essa no Rio, com direito a segurança pendurado na porta do carro,uma desmiolada bêbada dirigindo e eu me sentindo um idióta morto a qualquer momento.Ficamos meia hora agachados dentro de um fusquinha em um posto de gasolina fechado e escuro. Do medo virou tesão e quase rolou, só que dentro de um fusquinha e tendo que ficar agachados era querer demais.
Se quiser saber o final me pergunte, porque aqui não é lugar de ficar escrevendo minhas histórias.
Beijo.
B

panndora disse...

É claro que vou querer ouvir essa história e, quem sabe, ela não vem mesmo parar aqui. Agora, cá pra nós, fugir com um fusquinha deve ser bem mais emocionante do que fugir com um monza.
Bejinho.