Muito bem, agora chegou minha hora e minha vez de contribuir de forma definitiva com a ciência, ampliando possibilidades para as teorias da "Geração Espontânea" e da "Origem das Espécies". Primeiramente devo informar que isso não nasceu numa vontade repentina e irresistível de escrever meu nome entre os grandes vultos da ciência. Não, não fiz planos, não tinha pretensões, mas de repente, não mais que de repente, a sorte me sorriu e me deu de presente a chance de observar bem debaixo do meu nariz a vida surgir e multiplicar-se sem pedir licença.
O local foi o mais improvável possível: um departamento de projetos, com muitos computadores, algumas pranchetas, mesas e bastante papéis, como um ambiente de escritório, inóspito para o delicado florescer da vida. Trabalho lá. Na rotina diária, além do desenvolvimento de projetos, está o despacho de processos, o envio de CIs (Comunicações Internas), a resposta a ofícios, a troca de mensagens e arquivos via e-mail. Um sobrepor de atividades que envolvem muitas folhas de celulose. Minha mesa nunca foi um exemplo de organização, longe disso. Os papéis vão se acumulando na ordem dos mais urgentes ou importantes para os menos, até o dia que a situação fica insustentável e tenho que tomar uma atitude corajosa: arrumar a mesa. Foi logo após um desses raros momentos de coragem que algo chamou minha atenção.
As pilhas de papéis ficavam organizadas por categorias, um montinho só de processos, outro só de projetos, outro que agrupava CIs e ofícios, e outro unindo relatórios e notas técnicas. Nitidamente, de um dia para o outro, aparentemente durante a noite, os grupos que eram organizados com apenas uma categoria de documento permaneciam inertes, enquanto que os grupos que juntavam duas categorias cresciam a olhos nus. Estranhei, mas minha formação cartesiana não podia ficar somente no “achismo”. No fim do dia me posicionei em frente à mesa com o celular e, enquanto simulava fazer uma ligação, fotografei discretamente as pilhas de papéis de vários ângulos, sem que elas se dessem conta. No dia seguinte, cedo, logo quando cheguei, repeti as fotos. Fui para o computador, calibrei a escala das fotos e medi pilha por pilha. Não deu outra, os montes cresceram em média doze milímetros durante apenas uma noite.
Aquele fenômeno que acontecia sobre a minha tutela me tirou as noites. Tinha que haver uma explicação para tal aberração. Passada a inicial confusão mental fui me consultar com os moderninhos pais dos burros, o casal Wikipédia e Google, mas ainda estava muito raso. Parti para as revistas científicas e os clássicos da literatura especializada, passeando por Darwin, e então as coisas começaram a fazer sentido.
Identifiquei que as pilhas que cresciam uniam sempre documentos do gênero masculino - reprodutores - a documentos do gênero feminino - matrizes. Ou seja, o ofício à CI, o relatório à nota técnica, e assim por diante. Bastante sugestivo. A primeira providência foi separar por gênero. Não se tratava de um ato de repressão ao amor livre, mas uma etapa de verificação de possibilidades num estudo científico, com algum prejuízo para as partes envolvidas, admito. Durante uma semana a interferência surtiu nítido efeito, o acúmulo da papelada não aumentou mais do que o normal esperado pela produção do trabalho. Na segunda semana três ocorrências puderam ser notadas. Número um: a movimentação dos documentos, com troca de posições e aproximação dos gêneros. Número dois: onde não havia possibilidade de aproximação entre os dois gêneros, iniciou-se um processo de auto fecundação com o gradual desenvolvimento do hermafroditismo. Número três: o retorno gradual do aumento das pilhas. Era a vida procurando seus meios. Numa ação mais insensata, fiquei até mais tarde no trabalho e na hora de fecharem a empresa me escondi entre mesas e cadeiras para observar durante a noite. Até altas horas estava tudo um marasmo tão grande que acabei cochilando. Lá pelas quatro da madrugada acordei com um ki-ki-ki, ká-ká-ká geral. Os documentos conversavam, sussurravam e riam entre si, como uma festinha em petit comité. Quando começou a fase do roça-roça e do nheco-nheco catei minha bolsa e parti a mil. Curiosidade científica tem limite, já tinha visto o necessário.
Não havia mais dúvida, o chamego entre seres aparentemente inanimados era, sim, bastante animado. Enfim encontramos a verdadeira razão para o amontoado de papéis na minha mesa. E eu, que durante tanto tempo fui difamada e injustamente rotulada como desorganizada, malucada e descabelada enquanto tentava me achar nos tortuosos caminhos do meu canto de trabalho. Mas a redenção chegou e da escuridão da incompreensão saí para a luz do reconhecimento de minha significativa contribuição para a ciência. Não, não, não quero louros, quero apenas gozar da paz da certeza que só cumpri com o meu dever: observei, registrei e relato aqui, agora, para o mundo, mais um capítulo do maravilhoso milagre da reprodução.
5 comentários:
Sugiro a você, dona Panndora, que ao sair pratique o famoso "5 S" dos programas de qualidade japoneses, ou seja, guarde todos os documentos em gavetas ou pastas e vc. verificará que o processo de reprodução desenfreada de documentos sobre a sua mesa nunca mais acontecerá.
Os japoneses descobriram isso colocando câmeras, em vez de dormirem escondidos no escritório.
O resultado é sensacional!
Beijo do Borges.
Participei ativamente como pesquisadora adjunta do assunto e dou um alerta a todos: canetas e lápis são extremamente fecundos. Comecei com uma caneta e um lápis e ao fim de apenas uma semana, surgiram mais de 20 no meu porta-lápis.
A propósito, nem pessem em lucar com essa experiência, pois somente eu sei o ambiente propício para a reprodução de canetas/lápis e a experiencia já está patenteada.
Caro Alemão,
Cada um usa o recurso que dispõe. Além disso, câmeras são um recurso civilizado, previsível e high tech demais para uma loura que veio do mato. De qualquer forma, como relatado no texto, a vida sempre procura seus meios, mas gosto da sua postura cética e questionadora. Se você tiver pretensões no campo da pesquisa científica, posso interceder por você no metiê.
Respeitosas saudações da comunidade científica.
Aninha,
O seu depoimento causou um verdadeiro alvoroço na comunidade científica e existem vários grupos com patrocínio garantido querendo pesquisar o fenômeno. Até então, as publicações científicas relatavam justamente o contrário, alegando que as canetas eram estéreis e, além disso, com tendências homicidas-suicidas com alto poder evaporativo, porque “ô” criaturinhas que somem. Vamos pensar em estender esse estudo?????
Saudações colega da comunidade.
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