quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Será que ele liga?

O suicídio de Dorothy Hale - Frida Kahlo


Ah... l’amour. O início de um amor é tão mágico que uma simples pernada até à padaria para comprar o pão da hora, ganha ares de um passeio às margens do Sena, sob a luz da lua, ao som de La Vie en Rose. E o nosso amado, o tão cobiçado objeto de desejo? Aos nossos olhos esse é irretocavelmente perfeito, agraciado com prendas e encantos sem paralelos na esfera terrestre. Não é fácil para um mortal segurar a pressão. Cada detalhe, cada gesto nosso é importante e pode selar definitivamente a sorte do romance. Na empreitada de fazermo-nos dignos de tal graça, vale tudo: camuflar, florear, exagerar, entre outros baixos subterfúgios, todos os recursos possíveis para nos aproximar dos moradores do Olimpo e sermos merecedores de sua atenção.

Nesse embalo, lá estava eu, na ansiedade de um quinto encontro, preparando minuciosamente cada detalhe. O cabelo, a maquiagem, as unhas, a roupa, o sapato. Apesar de gastar em média vinte minutos com cada item, tudo tinha que parecer despretensioso e casual, tipo: "só tive tempo de tomar banho e vestir qualquer coisa". A programação era um cineminha, um filme de terror, e nada poderia ser mais propício como desculpa para me encolher protegida por seus braços.

Tanta preparação não podia dar em outra: chegamos atrasados. O filme já havia começado há uns dez minutos e entramos na sala com as luzes apagadas. Um filme de terror inspira concentração e tensão. Um filme de terror com a chancela de Anthony Hopkins, por sua vez, remete a aficionados apreciadores do gênero na sétima arte. Nesse contexto, subimos as escadas correndo, eu um pouco a frente. Quando encontrei uma fila com dois lugares, parei e virei subitamente, cento e oitenta graus, ficando de frente para ele e para a tela. Mas o freio não estava muito em dia, e o eixo, um pouco desalinhado e desbalanceado pelo desgaste do tempo. Como conseqüência, perdi o equilíbrio e fui caindo lentamente, tentando alcançá-lo com a mão. Não alcancei e caí de bunda sem conseguir segurar o riso, com lampejos de gargalhada. Conseguimos logo na entrada quebrar o clima que o diretor do filme levou mais de um ano para construir. Sentados, ele, para minha surpresa e espanto, com a cara mais limpa, pediu ao desafortunado vizinho de cadeira que relatasse detalhadamente todos os acontecimentos da fita até aquele momento. Coitado do vizinho, ninguém merece. Será mesmo que isso é uma prática comum no distante Olimpo?

Saímos do cinema e fomos comer um sushi na praça de alimentação do shopping. Meu filme estava queimado com a queda, mas eu ainda tinha a noite inteira para remediar a situação e parecer uma deusa. Sentamos e o papo foi rolando entre cinema e arte, num nível de erudição e cultura totalmente incompatível com uma loura. Aprofundando as questões surgiu Frida Kahlo e seu estilo inconfundível de retratar fatos de sua vida e acontecimentos de seu tempo, quando comecei a descrever uma de suas obras. A obra foi encomendada por uma conhecida editora de revista da época, que pediu a Frida que pintasse um retrato de sua amiga que havia se suicidado recentemente pulando de um edifício. Frida, com a sutileza que lhe é peculiar, pintou como pano de fundo a mulher caindo do alto do prédio, e no primeiro plano, a suicida desfalecida no chão se esvaindo em sangue. A dona que encomendou o quadro achou uma aberração e não quis nem saber da tela. Eu, por minha vez, empolgadíssima com a vida (ou a morte) da obra, tentando descrever a queda com realidade, fui pendendo o corpo para a esquerda, lado oposto ao dele, até que perdi o controle e, pasmem, caí junto com a cadeira, eu e a cadeira com as pernas para cima. A cadeira teve um comportamento impecável. Ficou constrangida e calada, e agiu como uma dama num momento de infortúnio. Eu, é claro, ri, sem conseguir parar, sem conseguir levantar. Ele, primeiro sorriu, para mostrar a todos que assistiam que tudo estava bem, depois, vendo que eu continuava estatelada no chão, levantou-se para me erguer.

Não preciso nem dizer, era fim de linha para mim. Com essa compostura eu seria persona non grata até mesmo num churrasco na laje. Terminamos o sushi e fomos embora. No trabalho, quando contei entre risos as aventuras do fim de semana, os amigos propuseram logo um bolão, apostando se ele ligaria novamente ou não. A imensa maioria das apostas era para "não liga". Ai que drama, drama, acabei com todas as minhas chances de entrar no Olimpo pela porta da frente. Contudo, contrariando todos os prognósticos e para a surpresa geral, ele ligou. Tem maluco para tudo nesse mundo.

8 comentários:

Anônimo disse...

Pandoríssima Insana,
Você nada mais fez do que a representação ao vivo da queda pintada no quadro de Frida. Nada como incorporar o personagem!
Além do mais, é bom mesmo que a criatura se acostume com tanta insanidade, porque foi apenas o começo. Basta ler todas as postagens deste blog e conversar comigo a seu respeito, que eu darei maiores informações.
Nice.

panndora disse...

Então, às vezes não consigo controlar meus talentos cênicos e extrapolo na medida.

Quanto ao blog e meu top secret codinome Panndora, acho que, por enquanto, ele não precisa saber da existência e de seu conteúdo, só por enquanto.

Quanto a conversar com você, acho que ele não precisa disso por um tempo, um tempo tipo até o final dos tempos.

Bjss

Anônimo disse...

Adoro esta fase nas relações quando os tombos são uma graça a mais, os defeitos são apenas imperfeições delegadas ao acaso, as conversas são todas interessantes, e a vida continua sendo uma fração de encontros inteligentes.
Já lhe dei o meu beijo de boa sorte.
JB

Anônimo disse...

ADORO MULHERES COMPETENTES.DEPOIS DE TANTAS QUEDAS AINDA CONSEGUIU SEGURAR O HOMEM.PRECISAMOS CONHECER A FÓRMULA.

panndora disse...

ôôô Amigo,

Adoro ver você por aqui, mesmo porque, você é sócio fundador.

Então, essa é a fase boa, tudo tão lindo, tudo tão mágico, apesar das quedas, que fizeram de tudo para sabotar o romance...

Bjsss.

panndora disse...

anônima Vi,

Não sei se é uma questão de competência minha ou de algum distúrbio dele. E quer saber? Não vou nem procurar saber, deixa rolar.

Mudando de assunto, cadê as suas histórias para eu contar?

Bj grande.

Anônimo disse...

Ola querida. Tive um ataque de riso com este texto.. fiquei imaginando a cena e me matando de rir de pensar em dois tombos no mesmo encontro. SO VOCÊ!!!

Beijos com saudades
Prima Paula

panndora disse...

Então prima,

Essas coisas acontecem nas melhores famílias; tudo bem que só acontece com os piores das melhores famílias, mas faz parte. O mais interessante é que lá se vão algumas semanas e o negócio está rendendo. Estou pensando em escrever um manual de sedução revendo todos os conselhos já pré-estabelecidos, ou então... exigir dele um atestado de sanidade mental, só por garantia.

Saudade e Bjs para todos
e em especial para Bia e PHzinho