terça-feira, 1 de março de 2011

Eu e minha sandália


Isso vai, isso não vai. Esse talvez, aquele com certeza não. Mas aquilo, que vai, é tão específico, e talvez seja melhor não ir. E aquele outro, que não vai, é tão lindo, que mal há em levá-lo para dar uma volta? Fazer a mala é sempre um tormento, um problema que nem mesmo a matemática avançada atreve-se a por mão. Mais uma vez estava eu em reviravoltas com a bagagem. A meta era uma malinha compacta para três dias em Goiás, com a família. Quando na arrumação descobri que a sandália que usaria no evento de sexta seria perfeita também para a festa de sábado, comemorei. Menos um trambolho para carregar.

Já em Goiás, na sexta à noite, calcei a sandália e circulei encantadora por um teatro lotado. No dia seguinte, pela manhã, tive que calçá-la novamente, pois havia deixado a mala na casa da prima Paula, mas acabei indo dormir na casa do primo Junior, sem nada na mão. Quando enfim reencontrei minha bagagem e troquei de roupa, verifiquei que a parte da frente dos dois pés da sandália estava começando a descolar, um contratempo popularmente conhecido como "boca de jacaré".

Ai, ai, ai, pensa rápido, pensa rápido. Eu só tinha aquela sandália para a balada da noite. Sejamos objetivos, havia duas opções. A primeira: sair e comprar outra. A segunda: improvisar. Veja bem, não era qualquer sandália, existia uma empatia entre nós. Ela estava comigo há aproximadamente dois anos, mas só havia lançado mão de seus serviços umas cinco vezes. Tratava-se de uma charmosa sandália preta de salto alto e de boa marca que, sem querer fazer merchandising, direi apenas que começa com "A" e termina com "rezzo". Então pensei: é uma boa menina e o problema é um detalhezinho de nada. Resolvido, opção improvisar! Vou sair, comprar uma daquelas colas que colam tudo e não largam de jeito nenhum e, quando voltar a Salvador, levo no sapateiro para os reparos necessários.

Colei os dois pés do calçado e considerei o assunto encerrado. À noite, já toda pronta com um pretinho básico, calçava minha linda sandália quando uma das tiras, sem qualquer comprometimento com nossa agenda, soltou na minha mão. Espera aí, acho que esta figura não está entendendo muito bem a situação. Alooouuu!!!! Às dez horas da noite não existe plano "B", e não havia chance de folga, day off, compensação e etc., era ela ou ela mesma. Catei a cola e mandei ver na tira desnaturada. Por via das dúvidas, levei a cola na bolsa.
A festa era um baile de máscaras para comemorar os quarenta e cinco aninhos da tia Ângela. Minha tia estava feliz, o salão estava lindo e os convidados animadíssimos; e o que era bom, prometia ficar ainda melhor com a chagada da banda. Enquanto isso, ia dançando timidamente ao som do DJ, beliscando algumas iguarias e bebericando um espumante, para entrar no clima. Numa dessas, retornando à mesa, senti as passadas em falso. Olhei para baixo e constatei que em um dos pés, a frente e a lateral tinham descolado, e largavam para trás um discreto rastro de pedacinhos de sola. Hé, hé, disfarça! Olhei em volta para ver se alguém acompanhava a cena e acelerei o passo até a mesa. Com toda a calma tirei a pequena e operei uma restauração com precisão cirúrgica, um mosaico com cada pecinho em seu lugar. Enquanto desenvolvia o trabalho manual, ia conversando com ela. Usei toda a minha eloqüência para explicar o seu papel naquele momento, sua importância e responsabilidade, e enchi sua bola exagerando sobre seus atributos. Falei emocionada como um treinador numa preleção antes do jogo decisivo. Dez segundos segurando e pronto: a sandália estava nova mais uma vez.

Voltei para o movimento e a farra só esquentava. Estava totalmente à vontade e entornava o espumante como há tempos não fazia. Quando a banda começou a tocar seus roques nacionais e internacionais a festa “bombou” e o salão ficou cheio de gente alucinada cantando e dançando. A bagunça era ótima. Eu pulava, dançava e cantava a plenos pulmões, abusando do meu inglês que fica fluente depois de várias taças. Nessa hora, justamente no melhor de tudo, aquela filha de uma rapariga da minha sandália acha de desmontar. Não tive dúvida, corri para a mesa e sem descalçar esvaziei o tubo de cola em cima dela, sem dó nem piedade. Novamente, dez segundinhos e pronto. Pronto? Pronto o quê? Meu pé colou! Ai meu Deus! Puxa dali, empurra daqui e nada, a sandália grudou como uma sanguessuga faminta. Gritei meu irmão Renato, que estava por perto, e pedi a presença do primo Junior, o médico da família. Reunida a junta médica, o diagnóstico foi proferido.

- Você está ferrada! Isso só no hospital!

Quer saber, se o destino nos uniu, então vamos relaxar e aproveitar. Voltei para o salão e dancei como se nada tivesse acontecido. No início, pareceu que seria uma união feliz, mas aquela sandália era bipolar. “Tô” bem, “tô” mal. “Tô” bem, “tô” mal. Quem agüenta? A desgramada começou a desintegrar. Eu não disse descolar ou desmontar, eu disse de-sin-te-grar. Naquela altura, somente um exorcismo dos mais ortodoxos poderia expulsar do corpo da sandália o espírito maligno que a assediava. Haviam pedaços seus por todo o salão e não tinha mais como disfarçar ou fingir que não era comigo. Nossa tumultuada relação estava na boca do povo. Onde eu ia, lá iam atrás de mim funcionários do buffet com aquela vassoura grande de fazer faxina por atacado, varrendo os fragmentos que deixava para trás. A louca se desfez toda, mas não largou do meu pé, premonizando que a separação seria traumática. Não obstante os contratempos, ficamos até o fim da festa. Em casa, tentei soltar com água quente, acetona e todas as receitas que me deram. Sem sucesso, me resignei e dormi coladinha com ela. Na manhã seguinte, a prima Paula me libertou cortando a pele presa com uma tesourinha. O que sobrou da desvairada foi para o lixo sem lamentações.

Mais tarde, no almoço que comemorou o aniversário do papai, comentávamos a odisséia quando tia Gê lembrou outra história. Uns dezoito anos atrás, no casamento da tia Ângela (novamente a tia Ângela), agredi com uma faca de cozinha uma sandália que estreava naquela noite. A agressão não foi despropositada, a sandália me provocou a noite inteira esfolando meu calcanhar. Mas a lembrança me levou a concluir: festas da tia Ângela e minhas sandálias são incompatíveis. Na próxima, engesso o pé.

2 comentários:

Anônimo disse...

Olá. Relembrei cada momento da sandália no seu texto. Adorei. Espero que não desista das festas da Tia Angela ou da familia. rs. Beijos com saudades Prima Paula

panndora disse...

Priminha,

Que delícia ver a família por aqui, ainda mais a família que foi tão atuante nesta saga. Apesar das seqüelas do episódio, me diverti muito.
Mudando de assunto completamente e nada a ver com a crônica, estou pensando em fazer uns bicos para reforçar o orçamento doméstico, será que posso lhe indicar para referências?
Bjs e saudade de vocês,
cheiro nos meninos.